Na Inglaterra, a centralização do Estado se processou de modo inteiramente diverso da Península Ibérica. Nunca houve (com exceção, talvez, de dois reis medievais, Santo Eduardo e Ricardo-Coração-de-Leão, e bem mais recentemente com alguns monarcas e príncipes da Dinastia Stuart) um relacionamento de tipo afetivo, da população britânica com seus reis. Se em Portugal e mesmo na Espanha, os reis sempre foram considerados os protetores natos do povo, contra possíveis abusos da nobreza (há inúmeros episódios na história dos povos ibéricos nessa linha), já na Inglaterra os reis e os nobres quase sempre tendiam a ser vistos, pela população, como de uma mesma classe que, em última análise, provinha dos invasores saxões ou normandos e continuava as pilhagens dos seus antepassados.
Sempre houve conflitos intestinos muito profundos na tessitura social, cultural e política da Grã-Bretanha. Ocorreram problemas étnicos (anglos X saxões, anglo-saxões X irlandeses, ingleses X escoceses, escoceses das Highlands X escoceses das terras baixas, clãs célticos entre si, por exemplo, Drummonds X MacGregors, Campbells X MacDonalds etc.), problemas culturais (a velha e proverbial inimizade Dr.Saxon X Mr.Celtic), problemas linguísticos (o gaélico até hoje é falado na Escócia e no País de Gales, como também nas Irlandas) e, sobretudo, problemas religiosos. No que diz respeito aos conflitos religiosos, considere-se que, somente no reinado de Isabel I, que durou 44 anos, foram executadas dez vezes mais pessoas, por motivos religiosos, do que em quase 400 anos de Inquisição espanhola; e, note-se, não foram apenas os católicos romanos que foram mortos, mas também numerosos protestantes presbiterianos não episcopalianos, que não alinhavam com a religião oficial da monarquia isabelina.
Dentro desse conjunto extremamente confuso e ainda hoje um tanto artificial, firmou-se, de um lado, uma autoridade dos reis mais simbólica que efetiva, mas sem dúvida de grandíssimo prestígio moral, que foi e continua sendo capaz de sustentar a monarquia britânica solidamente estabelecida ainda em nossos dias. De outro lado, firmou-se uma burguesia forte e poderosa, inescrupulosa, interesseira, imbuída da famosa ética do calvinismo, estudada por Max Weber, a qual produziu o chamado "capitalismo selvagem" inglês, com abusos realmente espantosos cometidos no contexto da Revolução Industrial. Nas críticas a esse capitalismo selvagem, deve-se reconhecer que não pequena margem de razão teve Marx. Toda a expansão ultramarina inglesa foi marcada, bem mais do que a espanhola ou a portuguesa, por episódios realmente cruéis de exploração, pirataria e rapina.
Outra característica da expansão britânica é que nos seus padrões sócio-culturais as atividades de comércio não eram incompatíveis com a nobreza - como o eram geralmente no resto da Europa. De onde se viam, com absoluta naturalidade, nobres titulados não só à testa de indústrias ou casas comerciais, mas até praticando atos de pirataria e pilhagem pelos oceanos de todo o mundo - coisa que não era concebível em outras nações europeias.
Assim, a burguesia inglesa sempre viveu mesclada com sua nobreza. Talvez a Inglaterra tenha sido o único local do mundo em que existiam títulos e foros de nobreza comerciáveis, podendo ser vendidos e comprados livremente ao sabor das leis de oferta e procura. Tudo isso conferiu ao conjunto burguesia-nobreza da Inglaterra um caráter único, muito diferente do modelo ibérico, do francês, do germânico ou do italiano. A realeza inglesa sempre foi a suprema mantenedora dessa situação um tanto anômala, do ponto de vista social, e ao mesmo tempo sempre se apoiou nela.
O mais curioso é que, dada a "mística" própria das instituições monárquicas in genere, e da britânica em especial, o povo inglês se identifica com seus monarcas, entranhada e seriamente. Uma pesquisa realizada há cerca de 20 anos revelou que, dos britânicos, mais da metade sonha frequentemente com a Rainha. Nesses sonhos, a Rainha raramente fala ou toma uma atitude, mas geralmente aparece imóvel, como uma figura hierática presente num canto da cena, vendo a tudo, assistindo a tudo, como espécie de anjo tutelar do Reino Unido. Alguns dos entrevistados diziam que seus sonhos eram como os selos de correio, em que a efígie da soberana sempre aparecia no cantinho superior direito. Nas famílias inglesas de todos os níveis, há sempre um retrato da Rainha e as crianças são habituadas, desde muito pequenas, a irem todas as noites se perfilarem e se despedirem da soberana.
Povo singular, realmente, o inglês! Tem muito de incompreensível para nós, latinos. Recomendo que leiam, se ainda não o fizeram, o livro “Os ingleses”, escrito a quatro mãos por Peter Burke (inglês, filho de pai irlandês católico e de mãe polonesa judia) e sua esposa, a brasileira Maria Lúcia Garcia Pallares Burke. Vale a pena! É obra de referência.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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