PAZ - Blogue luso-brasileiro
Sábado, 29 de Agosto de 2020
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - A INGLATERRA FOI UM CASO INTEIRAMENTE À PARTE...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Armando Alexandre dos Santos.jpg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na  Inglaterra, a centralização do Estado se processou de modo inteiramente diverso da Península Ibérica. Nunca houve (com exceção, talvez, de dois reis medievais, Santo Eduardo e Ricardo-Coração-de-Leão, e bem mais recentemente com alguns monarcas e príncipes da Dinastia Stuart) um relacionamento de tipo afetivo, da população britânica com seus reis. Se em Portugal e mesmo na Espanha, os reis sempre foram considerados os protetores natos do povo, contra possíveis abusos da nobreza (há inúmeros episódios na história dos povos ibéricos nessa linha), já na Inglaterra os reis e os nobres quase sempre tendiam a ser vistos, pela população, como de uma mesma classe que, em última análise, provinha dos invasores saxões ou normandos e continuava as pilhagens dos seus antepassados.

Sempre houve conflitos intestinos muito profundos na tessitura social, cultural e política da Grã-Bretanha. Ocorreram problemas étnicos (anglos X saxões, anglo-saxões X irlandeses, ingleses X escoceses, escoceses das Highlands X escoceses das terras baixas, clãs célticos entre si, por exemplo, Drummonds X MacGregors, Campbells X MacDonalds etc.), problemas culturais (a velha e proverbial inimizade Dr.Saxon X Mr.Celtic), problemas linguísticos (o gaélico até hoje é falado na Escócia e no País de Gales, como também nas Irlandas) e, sobretudo, problemas religiosos. No que diz respeito aos conflitos religiosos, considere-se que, somente no reinado de Isabel I, que durou 44 anos, foram executadas dez vezes mais pessoas, por motivos religiosos, do que em quase 400 anos de Inquisição espanhola; e, note-se, não foram apenas os católicos romanos que foram mortos, mas também numerosos protestantes presbiterianos não episcopalianos, que não alinhavam com a religião oficial da monarquia isabelina.

 Dentro desse conjunto extremamente confuso e ainda hoje um tanto artificial, firmou-se, de um lado, uma autoridade dos reis mais simbólica que efetiva, mas sem dúvida de grandíssimo prestígio moral, que foi e continua sendo capaz de sustentar a monarquia britânica solidamente estabelecida ainda em nossos dias. De outro lado, firmou-se uma burguesia forte e poderosa, inescrupulosa, interesseira, imbuída da famosa ética do calvinismo, estudada por Max Weber, a qual produziu o chamado "capitalismo selvagem" inglês, com abusos realmente espantosos cometidos no contexto da Revolução Industrial. Nas críticas a esse capitalismo selvagem, deve-se reconhecer que não pequena margem de razão teve Marx. Toda a expansão ultramarina inglesa foi marcada, bem mais do que a espanhola ou a portuguesa, por episódios realmente cruéis de exploração, pirataria e rapina.

Outra característica da expansão britânica é que nos seus padrões sócio-culturais as atividades de comércio não eram incompatíveis com a nobreza - como o eram geralmente no resto da Europa. De onde se viam, com absoluta naturalidade, nobres titulados não só à testa de indústrias ou casas comerciais, mas até praticando atos de pirataria e pilhagem pelos oceanos de todo o mundo - coisa que não era concebível em outras nações europeias.

Assim, a burguesia inglesa sempre viveu mesclada com sua nobreza. Talvez a Inglaterra tenha sido o único local do mundo em que existiam títulos e foros de nobreza comerciáveis, podendo ser vendidos e comprados livremente ao sabor das leis de oferta e procura. Tudo isso conferiu ao conjunto burguesia-nobreza da Inglaterra um caráter único, muito diferente do modelo ibérico, do francês, do germânico ou do italiano. A realeza inglesa sempre foi a suprema mantenedora dessa situação um tanto anômala, do ponto de vista social, e ao mesmo tempo sempre se apoiou nela.

O mais curioso é que, dada a "mística" própria das instituições monárquicas in genere, e da britânica em especial, o povo inglês se identifica com seus monarcas, entranhada e seriamente. Uma pesquisa realizada há cerca de 20 anos revelou que, dos britânicos, mais da metade sonha frequentemente com a Rainha. Nesses sonhos, a Rainha raramente fala ou toma uma atitude, mas geralmente aparece imóvel, como uma figura hierática presente num canto da cena, vendo a tudo, assistindo a tudo, como espécie de anjo tutelar do Reino Unido. Alguns dos entrevistados diziam que seus sonhos eram como os selos de correio, em que a efígie da soberana sempre aparecia no cantinho superior direito. Nas famílias inglesas de todos os níveis, há sempre um retrato da Rainha e as crianças são habituadas, desde muito pequenas, a irem todas as noites se perfilarem e se despedirem da soberana.

Povo singular, realmente, o inglês! Tem muito de incompreensível para nós, latinos. Recomendo que leiam, se ainda não o fizeram, o livro “Os ingleses”, escrito a quatro mãos por Peter Burke (inglês, filho de pai irlandês católico e de mãe polonesa judia) e sua esposa, a brasileira Maria Lúcia Garcia Pallares Burke. Vale a pena! É obra de referência.

 

 

 

 

ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS  -  é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 



publicado por Luso-brasileiro às 13:07
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
arquivos

Julho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

favoritos

JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINEL...

pesquisar
 
links