Na fase crítica da decadência do Império Romano e das sucessivas invasões bárbaras, na transição da Antiguidade Tardia para a Alta Idade Média, e no estabelecimento das novas monarquias bárbaras que se estabeleceram após o desmoronar do gigantesco edifício administrativo do Império Romano, a Igreja Católica é que assegurou a manutenção, em toda a medida do possível, da ordem e da estabilidade. Por recomendação papal, os bispos e o clero em geral permaneceram nos seus postos, passando a dedicar aos novos senhores da situação a mesma atenção pastoral que até então haviam tido em relação aos antigos.
Pela própria ordem natural das coisas, era ao bispo, era à autoridade eclesiástica que, naquele emergência, recorriam os povos, necessitados de proteção e de uma autoridade efetiva que lhes assegurasse a sobrevivência. Competia à autoridade eclesiástica, pois, tomar atitudes administrativas e governativas em matéria temporal, e para essa função muitos eclesiásticos se encontravam particularmente aparelhados, porque eram membros de famílias nobres habituadas ao mando e ao exercício da autoridade. Eram membros dessas famílias que habitualmente eram escolhidos para as funções eclesiásticas. Naquele tempo, a Igreja Católica ainda não se havia estruturado como mais tarde se estruturou, o Direito Canônico ainda estava dando seus primeiros passos, as dificuldades de comunicação não permitiam fáceis consultas ao Papa e não havia sequer um colégio de Cardeais - que só muito mais tarde foi instituído. Por isso, os bispos tinham, em âmbito local, uma extensão de poderes muito maior do que passariam a ter mais tarde, quando aumentaram os mecanismos administrativos e de controle da Santa Sé, e o próprio povo muitas vezes participava de decisões para a escolha de sacerdotes, de bispos e até, no caso de Roma, de Papas.
A esse propósito, assim comenta o medievalista francês Jacques Heers (1924-2013), professor da Universidade de Paris-Nanterre: “Nos primeiros tempos bárbaros, o bispo permanece como o único senhor da cidade, encarna a única força espiritual do momento e, muitas vezes, se identifica mesmo com a `nação´ romana. Nessa época conturbada, a escolha dos cristãos recai frequentemente sobre um leigo, pio e poderoso, já acostumado ao andamento dos assuntos públicos. Membro da grande aristocracia, rico proprietário, administrador experiente, o bispo protege a cidade contra pilhagens e desordens; assegura o abastecimento e controla o mercado, constrói e mantém hospitais e escolas. Perto da catedral faz trabalhar um grupo de pequenos artesãos e lojistas. (HEERS, Jacques. História Medieval. São Paulo: Difel, 3ª. ed., 1981, p. 31-32.
As condições peculiares da época exigiam que fosse assim, mas isso produzia uma situação que podia trazer, e com frequência trazia, confusões não pequenas entre as duas esferas, a espiritual e a temporal.
Tais esferas são autônomas, ambas soberanas no seu próprio âmbito de atuação. Jesus Cristo foi bem claro no seu ensinamento a esse respeito. Quando lhe perguntaram se era lícito pagar tributo a César, Ele pediu que lhe mostrassem a moeda com a qual era pago o imposto romano. Mostraram-lhe um denário. Sem tocá-lo, Jesus perguntou de quem era a efígie nele estampada e de quem era o nome nele inscrito. Responderam-lhe que era de César. E Jesus retrucou: - Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. O episódio é contado quase textualmente com as mesmas palavras nos três Evangelhos sinóticos: em São Mateus (22,15-22), em São Marcos (12,13-17) e em São Lucas (20,20-26).
Mais claro não poderia ter sido o ensinamento de Jesus Cristo. Mas há dois mil anos esse ensinamento tão claro vem sendo confundido pelos homens, tanto eclesiásticos como civis. Para muitos eclesiásticos, a tentação é aproveitar-se do poder espiritual para exercer, sobre a esfera civil, um poder que não lhe compete; e para muitos leigos, a tentação é instrumentalizar a religião e sua prática como meios para aumento do poder temporal, social e até econômico. Esse duplo desvio, com o consequente desvirtuamento da independência de cada uma das duas esferas, se fez notar ao longo de todas as épocas e ainda hoje basta abrir os jornais ou ligar os noticiários televisivos para vermos que continua presente. No Medievo, também ocorreu isso. Veremos como na semana que vem.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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