PAZ - Blogue luso-brasileiro
Quinta-feira, 15 de Dezembro de 2022
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR

 

 

 

 

 

 

Armando Alexandre dos Santos.jpg

 

 

 

 

 

Na fase crítica da decadência do Império Romano e das sucessivas invasões bárbaras, na transição da Antiguidade Tardia para a Alta Idade Média, e no estabelecimento das novas monarquias bárbaras que se estabeleceram após o desmoronar do gigantesco edifício administrativo do Império Romano, a Igreja Católica é que assegurou a manutenção, em toda a medida do possível, da ordem e da estabilidade. Por recomendação papal, os bispos e o clero em geral permaneceram nos seus postos, passando a dedicar aos novos senhores da situação a mesma atenção pastoral que até então haviam tido em relação aos antigos.

Pela própria ordem natural das coisas, era ao bispo, era à autoridade eclesiástica que, naquele emergência, recorriam os povos, necessitados de proteção e de uma autoridade efetiva que lhes assegurasse a sobrevivência. Competia à autoridade eclesiástica, pois, tomar atitudes administrativas e governativas em matéria temporal, e para essa função muitos eclesiásticos se encontravam particularmente aparelhados, porque eram membros de famílias nobres habituadas ao mando e ao exercício da autoridade. Eram membros dessas famílias que habitualmente eram escolhidos para as funções eclesiásticas. Naquele tempo, a Igreja Católica ainda não se havia estruturado como mais tarde se estruturou, o Direito Canônico ainda estava dando seus primeiros passos, as dificuldades de comunicação não permitiam fáceis consultas ao Papa e não havia sequer um colégio de Cardeais - que só muito mais tarde foi instituído. Por isso, os bispos tinham, em âmbito local, uma extensão de poderes muito maior do que passariam a ter mais tarde, quando aumentaram os mecanismos administrativos e de controle da Santa Sé, e o próprio povo muitas vezes participava de decisões para a escolha de sacerdotes, de bispos e até, no caso de Roma, de Papas.

A esse propósito, assim comenta o medievalista francês Jacques Heers (1924-2013), professor da Universidade de Paris-Nanterre: “Nos primeiros tempos bárbaros, o bispo permanece como o único senhor da cidade, encarna a única força espiritual do momento e, muitas vezes, se identifica mesmo com a `nação´ romana. Nessa época conturbada, a escolha dos cristãos recai frequentemente sobre um leigo, pio e poderoso, já acostumado ao andamento dos assuntos públicos. Membro da grande aristocracia, rico proprietário, administrador experiente, o bispo protege a cidade contra pilhagens e desordens; assegura o abastecimento e controla o mercado, constrói e mantém hospitais e escolas. Perto da catedral faz trabalhar um grupo de pequenos artesãos e lojistas. (HEERS, Jacques. História Medieval. São Paulo: Difel, 3ª. ed., 1981, p. 31-32.

As condições peculiares da época exigiam que fosse assim, mas isso produzia uma situação que podia trazer, e com frequência trazia, confusões não pequenas entre as duas esferas, a espiritual e a temporal.

Tais esferas são autônomas, ambas soberanas no seu próprio âmbito de atuação. Jesus Cristo foi bem claro no seu ensinamento a esse respeito. Quando lhe perguntaram se era lícito pagar tributo a César, Ele pediu que lhe mostrassem a moeda com a qual era pago o imposto romano. Mostraram-lhe um denário. Sem tocá-lo, Jesus perguntou de quem era a efígie nele estampada e de quem era o nome nele inscrito.  Responderam-lhe que era de César. E Jesus retrucou: - Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. O episódio é contado quase textualmente com as mesmas palavras nos três Evangelhos sinóticos: em São Mateus (22,15-22), em São Marcos (12,13-17) e em São Lucas (20,20-26).

Mais claro não poderia ter sido o ensinamento de Jesus Cristo. Mas há dois mil anos esse ensinamento tão claro vem sendo confundido pelos homens, tanto eclesiásticos como civis. Para muitos eclesiásticos, a tentação é aproveitar-se do poder espiritual para exercer, sobre a esfera civil, um poder que não lhe compete; e para muitos leigos, a tentação é instrumentalizar a religião e sua prática como meios para aumento do poder temporal, social e até econômico. Esse duplo desvio, com o consequente desvirtuamento da independência de cada uma das duas esferas, se fez notar ao longo de todas as épocas e ainda hoje basta abrir os jornais ou ligar os noticiários televisivos para vermos que continua presente. No Medievo, também ocorreu isso. Veremos como na semana que vem.

 

 

 

ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS  -  é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.



publicado por Luso-brasileiro às 11:46
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
arquivos

Julho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

favoritos

JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINEL...

pesquisar
 
links