O gênero "vida cotidiana" sempre me fascinou, pois permite mergulhos em certas sociedades do passado, estudando-as e analisando-as em profundidade, nos mais variados aspectos da sua realidade viva.
Não é um gênero fácil. O autor de uma "vida cotidiana" necessita conhecer profundamente não só a história de uma época, mas precisa de conhecimentos pluri-disciplinares muito extensos, sob pena de falhar redondamente no quadro que traçar.
Recordo que o primeiro livro dessa fascinante série que li foi "A vida cotidiana na Rússia, no tempo do último Czar", de Henri Troyat, franco-russo autor de numerosos livros históricos ou de ficção que mais tarde eu devoraria com avidez. Li, depois, "A vida cotidiana em Lisboa, ao tempo do terramoto", de uma autora francesa, cujo nome esqueci; "A vida cotidiana em Viena, no tempo de Schubert", de Marcel Brion; "A vida cotidiana dos médicos franceses, no tempo do Rei-Sol" e várias outras.
O livro de “La vie quotidienne au temps d´Homère” de Émile Mireaux, membro do famoso Institut de France, é fascinante. Foi publicado em 1954, precisamente o ano em que nasci, pela Librairie Hachette, de Paris. Começo por explicar a sua metodologia.
Mireaux se baseou, na descrição da sociedade grega, sobretudo nos dois poemas homéricos, documentos que ele considera “em extremo preciosos, mesmo porque são insubstituíveis”, mas, como ressalta na introdução, teve bem presente que Homero estava escrevendo sobre fatos muito anteriores, de modo que a descrição da realidade social e da vida cotidiana corresponde mais ao seu tempo do que à realidade da Guerra de Troia e do peregrinar de Ulisses pelas vastidões oceânicas. Mireaux não se limitou a essas obras. Consultou também, e muito, os poemas de Hesíodo, escritos na segunda metade do século VII a.C. destacando que a descrição da vida rural que o poeta fez “ apresenta um grande valor documental, pois, se há um domínio no qual as modificações são lentas e insensíveis, esse é exatamente o domínio da sociedade camponesa”.
Também a Arqueologia forneceu informações importantes para a obra, especialmente nas tumbas, em que foram conservados muitos objetos de uso quotidiano que era costume sepultar junto com os mortos.
Outras fontes, menos diretas, também foram consultadas:
“A essas fontes diretas, há, por fim, que acrescentar as indiretas, que não são sempre as menos preciosas... São textos e instituições posteriores que dão testemunho e nos informam incidentalmente sobre a vida dos primeiros séculos da história grega. Ademais dos textos históricos propriamente ditos de Heródoto e de Plutarco, e de indicações esparsas colhidas eruditamente em diversos escritos políticos, filosóficos ou simplesmente literários, é preciso mencionar especialmente os textos jurídicos. As mais antigas legislações, na medida que nos são conhecidas pelas citações e inscrições, as de Dracon e de Sólon, as leis de Gortino, sem esquecer as leis hipotéticas de um Licurgo, contêm disposições que nos informam acerca de períodos mais recuados, seja porque se limitem a codificar velhos costumes, seja porque se apliquem a modificá-los ou restabelecê-los. ... O estudo crítico das instituições e dos costumes que se perpetuaram longamente nas cidades mais conservadoras, notadamente em Esparta, pode, por fim, fazer grande luz sobre as antigas estruturas familiares e sociais do mundo grego. As análises efetuadas nessa área por Henri Jeanmaire, à luz da etnografia comparada, revelaram-se particularmente produtivas. É verdade que sempre subsistem lacunas, como num vaso quebrado que se tenta reconstituir a partir de seus cacos. Mas é lícito, com os elementos disponíveis, tentarmos fazer reviver aquele longínquo passado pelo qual sentimos, movidos pelo prestígio da poesia, tão invencível atração".
Eu quis traduzir esse longo trecho extraído da Introdução porque, do ponto de vista metodológico, ele me pareceu de grande importância, como exemplo prático e concreto de uma reconstituição do passado, feita a partir de elementos de ordens e tipos muito diversos. Um trabalho inteligente de combinação e remontagem permite chegar a resultados muito consideráveis.
.ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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