Nesta série de artigos sobre a inveja, expusemos, em primeiro lugar, no que consiste esse vício capital e o papel que ele representou na História; em seguida, vimos dois exemplos de representação artística da inveja, um do medieval Giotto, outro do renascentista Bosch; agora, concluindo a série, gostaria de aduzir dois exemplos de representações literárias da inveja, uma delas do período medieval, a outra já dos albores do Renascimento.
O poeta francês Guilherme de Lorris (c. 1200-1230), ao descrever os vícios humanos expulsos do Jardim do Amor no “Romance da Rosa” (c. 1225), refere-se à inveja e alude à representação que, desse vício capital, costumavam fazer os artistas, com o característico olhar enviesado:
“A Inveja nunca deixa de falar mal dos outros: se conhecesse o mais nobre de todos que existe desse lado do mar ou do outro, ela tentaria ofendê-lo; e se fosse um homem tão íntegro que ela não conseguisse fazê-lo cair de seu mérito, nem derrubá-lo, ao menos lhe agradaria diminuir seu valor e sua honra, falando dele o menos possível. Na pintura vi que a Inveja tinha um olhar mau, pois não olhava de frente, somente de soslaio, dissimulando; esse era um mau costume seu, não contemplar nada abertamente, pelo contrário, só fechava um olho com desprezo, desdenhando e ardendo de raiva ao ver alguém nobre, formoso ou gentil, querido e estimado por todos” (“Primeira parte” de O Romance da Rosa, trad.: Sonia Regina Peixoto, Eliane Ventorim e Ricardo da Costa).
Na novela de cavalaria “Curial e Guelfa”, obra-prima da literatura catalã da segunda metade do século XV, de autor anônimo, a inveja é também representada antropomorficamente, de modo repelente:
“...uma velha muito alta e esquelética, barbuda, com longos fios de cabelo nas sobrancelhas, os olhos forrados por uma espécie de entretela, ambos de cor vermelha, lacrimosos e com remelas, toda enrugada e pálida, tão seca e magra que seu pescoço parecia o de um violão, sem carne alguma entre a pele e os ossos; usava uma roupa de lã negra e fosca, grossa, muito velha e desbotada, rasgada e muito despedaçada; descalça, com os pés cheios de bolhas e em algumas ranhuras vertia um sangue purulento... Tremia-lhe a cabeça, o queixo e as mãos, e sua boca não tinha dentes nem molares; escorria-lhe a saliva da boca, e água do nariz; suas orelhas pareciam pêssegos secos ou passas, e seus dedos e juntas eram como sarmento de dois ou três anos podados da cepa; a pele de seu corpo aos pedaços caía, e não lhe parecia senão cepa ou parreira que cai com o corte; e finalmente, nem a macacas velhas e com sarnas nem a qualquer outra coisa, por mais vil e desprezível que fosse, ela podia ser comparada” (ANÔNIMO do século XV. Curial e Guelfa. Primeira tradução para o português e notas: Ricardo da Costa. Revisão: Armando Alexandre dos Santos. Santa Barbara, California: EHumanista, 2011).
Como veem os leitores, não poderia ser mais repugnante – e, poderíamos acrescentar, mais correspondente à realidade - a forma como a inveja é representada nesses textos. Por que, então, ela é tão frequente entre nós?
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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