O dístico em francês do título, usado como lema por uma antiga família nobre da Saxônia, é espirituoso devido ao trocadilho entre a expressão “en vie” (que significa “em vida”) e a palavra homófona, mas não homógrafa, “envie” (inveja). Na tradução para o português perdem-se o trocadilho e a concisão, que dão beleza à formulação original do lema. Em tradução bem livre, ele significa “continuo vivo, apesar dos que me invejam”.
A inveja é uma paixão (ou um sentimento) que desde os mais remotos tempos sempre exerceu grande papel na História humana. Encontram-se traços dela em todas as épocas, na mitologia, na história e na literatura de todos os povos. O que caracteriza a inveja é a tristeza pelo bem alheio que não se possui. O invejoso se atormenta porque outro tem algo que ele queria ter, ou é alguma coisa que ele queria ser; em consequência, ele se esforça para privar o outro daquele bem, ainda que não possa vir a possuí-lo, somente pelo gosto de não ver outro que, a algum título, seja superior a ele.
A inveja se distingue do ciúme e da cobiça: ciúme é o desejo obsessivo de não perder algo que já se possui; cobiça é o desejo de possuir algo não possuído. A inveja, mais do que o desejo do bem alheio, é a tristeza pelo fato de outra pessoa possuir algo que não se tem.
Numa ótica religiosa, a inveja é até mesmo anterior à história humana. Por ser uma paixão de natureza intelectiva, pode ser vivida e praticada por puros espíritos, sem a necessidade de intermediação dos sentidos. Assim, já antes da Criação da Humanidade podia haver inveja entre os espíritos angélicos, e foi por inveja que Lúcifer se revoltou contra Deus.
A inveja do demônio em relação à obra de Deus também esteve na origem do Pecado Original, tal como afirma textualmente o Livro da Sabedoria: “Deus criou o homem imortal, e o fez à sua imagem e semelhança. Mas, por inveja do demônio, entrou no mundo a morte; e experimentam-na os que são do partido dele” (Sab., 2,23-25). O modo como a serpente tentou Eva, de acordo com o Gênesis, foi precisamente despertando nela um sentimento de inveja em relação a Deus, pois lhe assegurou que, caso comesse do fruto proibido, ela e Adão seriam “como deuses” (Gen, 3,5).
Consumado o Pecado Original e exilado o primeiro casal para a terra, desde logo manifestou-se a inveja. Foi um sentimento de inveja que esteve na raiz do primeiro crime de morte, de Caim contra seu irmão Abel (Gen, 4,1-16). E, a partir daí, a inveja sempre exerceu seu papel nefasto ao longo dos tempos, em todas as sociedades humanas.
A inveja também esteve presente no processo diametralmente oposto ao do Pecado Original, ou seja, na Redenção do gênero humano, consumada por Jesus Cristo, o Filho de Deus. Com efeito, a inveja foi o móvel que levou os Príncipes dos Sacerdotes israelitas a acusarem Jesus Cristo diante do tribunal de Pôncio Pilatos, fato que não passou despercebido ao próprio governador romano, que ainda tentou salvar Jesus Cristo propondo sua soltura (como era costume ser feito, por ocasião da solenidade da Páscoa), “porque sabia que o haviam entregado por inveja” (Mt, 27,18).
Para os teólogos, a inveja é um pecado capital, que por si mesmo induz à prática conjunta de outros pecados. São Tomás de Aquino, no século XIII, dedicou uma questão inteira da Suma Teológica (II-IIae, q. 36) ao estudo da inveja, colocando-a entre os vícios ou pecados capitais, como contrária à caridade, ou amor ao próximo. Já antes dele o Papa São Gregório Magno (+ 604) formulara com clareza a doutrina dos sete pecados capitais, que são o orgulho, a avareza, a inveja, a ira, a luxúria, a gula e a preguiça. São pecados particularmente perigosos, não porque sejam sempre mortais, mas porque são cabeças (daí o nome capitais) de outros pecados que costumam atrair consigo, à maneira de séquito. No caso concreto da inveja, costuma ela abrir um cortejo de “filhas” que a acompanham e constituem – ou pelo menos podem constituir – outros tantos pecados.
O cortejo de filhas da inveja é constituído, segundo São Tomás, pela murmuração (popularmente conhecida no Brasil como “fofoca”), pela detração, pela alegria com as desgraças do próximo, pela tristeza com seus sucessos e, por fim, pelo ódio (Suma Teológica, II-IIae, q.36, a.4).
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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