A cultura popular portuguesa é muito rica e variada, em todas as suas manifestações, na música, no canto, em matéria de danças, no artesanato, na culinária, na profusão de ditos e quadras populares recheados de sabedoria e bom senso acumulados ao longo dos séculos etc.
Recordo de memória, entre muitas outras, uma quadrinha popular lusitana, mais precisamente da Ilha da Madeira: “Que os homens são uns diabos / não há mulher que o negue, / mas todas andam à caça / de um diabo que as carregue!”. Por trás desses versinhos, quanto senso de humor, quanta capacidade de observação, quanta experiência de vida!
Em matéria musical, sem dúvida a grande expressão da alma lusitana é o fado. Suas origens perdem-se na noite dos tempos. De origem árabe supõem-no alguns. De origem mais recente, pretendem-no outros. Há quem sustente, mesmo em Portugal, que o fado teve origem no Brasil. Conheço três ou quatro fados que procuram explicar a origem do fado, evidentemente de modo poético e figurativo...
O fato é que o fado é profundamente identificado com Portugal e com a alma portuguesa como ela é, com suas qualidades e (manda a verdade que se diga) também com seus defeitos ─ qualidades e defeitos tão bem expressos e tão bem sintetizados pelo gênio de Eça de Queiroz na figura prototípica de Gonçalo Mendes Ramires.
Há fados de diversos tipos: os "corridinhos", de Lisboa, movimentados e por vezes até acompanhados em coro ou com palmas ritmadas pela plateia; os patrióticos, com um sentido mais épico que lírico; os religiosos, tendendo para o místico; os solenes de fundo lírico, do gênero mais conhecido como "fado de Coimbra", sempre ouvidos em respeitoso silêncio.
Em Lisboa, nas tradicionais “casas de fado”, sempre abertas para acolher os que vão ouvir o fado, mesmo que nada comam ou bebam, entre um fado e outro, come-se, bebe-se, fala-se, grita-se, ri-se, discute-se... Tudo é permitido. Mas, tão logo os primeiros acordes de uma nova música se fazem ouvir, faz-se completo silêncio.
Não se fala durante o fado. É quase profanação fazê-lo. Recordo do modo engraçado com que certo fadista chamou severamente a atenção de um grupo de rumorosos rapazes que haviam ousado perturbar o silêncio de rigor com algumas risadinhas mal abafadas:
- Ó meninos, vossas tias não vos ensinaram que o fado se ouve de bico calado?
Em Coimbra, nem se aplaude o fado à moda costumeira, batendo palmas. Isso seria falta de respeito. Por costume antigo, para significar que gostou do canto e de sua execução, o ouvinte limita-se a tossir. Ao fim do fado, põem-se todos a tossir... Num primeiro instante, isso causa estranheza. Mas quem ouve um fado de Coimbra, no contexto de Coimbra, logo se acostuma e acha muito natural.
Um tema exigiria longo espaço para ser desenvolvido: é mais apropriado dizer-se fado ou canção de Coimbra? Fado seria um gênero e o que se canta em Coimbra seria uma espécie? Ou a matriz do fado é precisamente a de Coimbra, e o que se canta e
Lisboa com o nome de fado seriam extensões, variantes, até deturpações da matriz que se teria conservado pura em Coimbra? O tema é polêmico, exigiria longas explanações e provavelmente nada concluiria. Pois ambos os tipos ou modalidades de fados (ou canções?) são tradicionais, envolventes e, cada qual à sua maneira, bem exprimem certas facetas da rica alma portuguesa.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - É licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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