Concluo hoje a série de artigos sobre os legendários e fascinantes caminhos de Santiago de Compostela, escritos a partir da alegria de reencontrar em excelente forma, na Praça José Bonifácio, o amigo Esio Pezzato, que acabava de retornar de Compostela, e de recordações e anotações feitas da antiga leitura de um livro francês, sobre a vida quotidiana dos peregrinos de Compostela através dos séculos.
Depois de expor com pormenores o rigor do processo arqueológico e histórico determinado por Roma, em fins do século XIX, para examinar e, por fim, aprovar a autenticidade das relíquias de Santiago, a respeitada Enciclopédia Espasa-Calpe prossegue:
"Durou por volta de três séculos o período de maior esplendor das peregrinações a Santiago de Compostela, desde o final do século XII. Essa peregrinação a Santiago foi uma das mais importantes de todo o mundo. Os devotos acorriam a Santiago como a Roma ou a Jerusalém. As caravanas seguiam ordinariamente pelas antigas estradas romanas. Não eram somente espanhóis os peregrinos que acudiam ao Santuário, mas eram muito numerosas e nutridas as peregrinações formadas no estrangeiro. A Inglaterra fornecia grande contingente de peregrinos e os da França eram tão numerosos que o caminho que seguiam e a porta pela qual entravam em Santiago eram conhecidos com o nome de Caminho e Porta dos Francos".
De fato, naqueles tempos remotos em que não havia imprensa, em que as comunicações eram difíceis e toda a economia se processava a nível local, muito pouca gente viajava. A imensa maioria das pessoas nascia, vivia e morria nos mesmos locais, sem nunca verem terras e ambientes novos. Havia mercados locais e, quando muito, feiras regionais. As notícias demoravam muito para se espalharem, pois além do analfabetismo generalizado não havia sistemas regulares de correio. Tudo isso era impensável. Para nós, hoje em dia, habituados à extrema facilidade das comunicações, é difícil entender o mundo daquele tempo. Mas ele era assim...
Dentro desse grande quadro de estabilidade e quase de imobilismo, as peregrinações religiosas representavam o elemento de variedade, de mobilidade, de novidade. Os peregrinos medievais desempenhavam, portanto, uma função social importantíssima, como instrumentos de difusão de cultura popular, de legendas, de tradições, de ensinamentos, de ditos e histórias que iam sendo passados de geração em geração.
Eram frequentes, na Idade Média, as peregrinações a santuários, de pessoas que desejavam obter o perdão de pecados que haviam cometido, ou desejavam atrair as bênçãos de Deus sobre si próprias e sobre suas famílias.
Havia também pessoas corajosas que empreendiam as peregrinações com desejo de aventuras, para conhecer novos ambientes. Não havia, quase, naquela fase da Idade Média, pessoas que fizessem essas viagens por motivos meramente econômicos ou comerciais. As rotas de viagem, aliás, eram tão perigosas e inseguras que não seria prudente transportar grandes valores por elas. Somente no final da Idade Média e começo da Renascença se intensificou o comércio entre as províncias de um reino e entre os diversos reinos, constituindo-se os primeiros bancos e grandes casas de comércio.
Compreende-se que, naquelas circunstâncias, os peregrinos que passavam por um lugarejo contando novidades, relatando fatos que haviam observado ou ouvido contar, representavam uma distração e uma fonte de conhecimentos muito considerável. Eram, pois, não só por piedade cristã e por devoção, mas também pelo gosto de ouvi-los e com eles aprenderem coisas novas, bem recebidos por todas as partes. Muitas vezes os habitantes dos vários locais, desde nobres castelões até pessoas simples do povo, disputavam a honra de acolher um peregrino. Sim, acolher um peregrino era uma honra. E o costume da hospitalidade, que se espalhou por toda a Europa Cristã e de lá veio para o Brasil, aqui se fixando e aclimatando, tem remota origem nos peregrinos medievais.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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