Tratei, no último artigo, da escola historiográfica metódica ou positiva, que se propunha como objetivo produzir uma história objetiva e exata, com a exatidão de uma ciência exata, como se tal fosse possível. Essa escola, como expliquei, imaginava que uma história escrita somente (ou quase somente) em documentos escritos de fonte oficial exprimiria a realidade objetiva dos fatos e, assim sendo, seria objetiva e confiável. Ledo engano! Por mais absurda que parece, na nossa perspectiva atual, essa ideia, ela esteve “na moda” na Europa e nas Américas desde meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Foi somente a partir de 1929, com o surgimento daquilo que mais tarde foi designado como “Escola dos Annales”, que essa ideia cerebrina começou a ser questionada.
Realmente, Marc Bloch e Lucien Febvre, figuras exponenciais da primeira geração da Escola dos Annales, seguidos por Fernand Braudel (1902-1985) e outros, na segunda geração, e por Philippe Ariès (1914-1984), Georges Duby (1918-1996), Jacques Le Goff (1924-1914), Michel de Certeau (1925-1986), Emmanuel Le Roy Ladurie (1929-), Pierre Nora (1931-) e outros mais, na terceira, revolucionaram - no bom sentido do termo - os estudos históricos.
Para se entender o abalo profundo causado por esses inovadores, há que ter em conta como eram e como pensavam as pessoas formadas (ou deformadas, melhor se diria) nos moldes do positivismo. Nos primeiros anos do século XX, numa sala de aula de prestigiosa universidade suíça, certo grande mestre, tido na época como o maior físico da Europa, dirigindo-se aos estudantes do alto da sua cátedra, disse-lhe:
– Os Srs. escolheram uma bela ciência para estudar, a Física. Cumprimento-os pelo bom gosto, mas devo dizer-lhes que não fizeram uma boa escolha. Se quisessem ter futuro, deveriam ter escolhido alguma outra ciência que ainda oferecesse possibilidades de progresso. Isso não acontece, infelizmente, com a nossa Física, em que tudo o que podia ser descoberto já o foi.
Um dos estudantes que o ouviam era um jovem de nome Albert Einstein. Enquanto ouvia essa tolice proferida solene e pomposamente do alto de uma cátedra, devia estar ruminando suas ideias, porque já em 1905, ano da conclusão de seu curso, aos 26 anos de idade, publicou os célebres cinco artigos nos quais expôs suas teorias que revolucionariam o ensino da Física.
O mesmo Einstein, anos depois, mais amadurecido e experimentado nas lutas da vida, resumiu em uma frase o seu desencanto com a mentalidade errônea de quem pensa que já sabe tudo, de quem acha que nada mais há para aprender: "É mais fácil quebrar um átomo do que romper uma ideia preconcebida".
O professor de Física que julgava já ter abarcado todo o campo abarcável por sua ciência era, por certo, formado na escola e com a mentalidade do positivismo, que tanto marcou o século XIX e cuja influência se prolongou nas primeiras décadas do século XX.
De fato, os homens do século XIX eram em geral dogmáticos, acreditavam sinceramente estar na posse da verdade em qualquer campo. Eles, que muitas vezes negavam os dogmas religiosos, acreditavam nos dogmas da Ciência, erigida quase ao nível de uma inquestionável e intolerante religião nova. Eram positivos, metódicos, maduros, "espíritos fortes" sem feminilidades ou infantilidades.
Nasci na metade do século XX, mais precisamente em 1954, mas convivi, na minha infância, com muitas pessoas da geração de meus avós ou tios-avós, nascidos ainda no século XIX ou no comecinho do século XX. Todos, homens e mulheres, eram afirmativos em excesso, até nas coisas mais simples. Pareciam viver só de certezas, de nada tinham dúvidas ou hesitações. Tudo para eles era branco ou preto, bom ou mau, certo ou errado, não entendiam os matizes, os meios-tons, os aspectos fugidios ou camaleônicos da realidade.
Eram pessoas que acreditavam piamente no mito do progresso irrefreável da Humanidade, imaginando que, tão logo a Medicina resolvesse o problema do câncer (que na época era o grande espantalho que aterrorizava as mentes, já que um diagnóstico "daquela doença", cujo nome muitos nem ousavam pronunciar, equivalia a uma sentença de morte) a expectativa de vida subiria para 120 ou 130 anos. Foram pessoas dessa geração que pagaram custosos procedimentos para serem congeladas, na esperança de, mais tarde, serem reanimadas e curadas de seus males, por avanços imaginários da futura Medicina. Os Estados Unidos estão cheios de "clínicas" dessas, com cadáveres congelados há 50, 60 ou mais anos.
Desculpem-me os leitores essa longa divagação acerca de pessoas que conheci na minha infância. Se a faço, é porque ela me parece conveniente para que possam imaginar o clima psicológico prevalente em 1929, quando Bloch e Febvre começaram a publicar a Revue des Annales, que se tornaria famosa e haveria de revolucionar os estudos da História no mundo inteiro. Voltaremos ao assunto.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras e professor da Unisul. Também é Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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