Vez por outra ouço, em ambientes dos mais variados, a pergunta sobre o porquê da designação que a Igreja Católica atribuiu a si mesma. Por que Católica? Por que Apostólica? E por que Romana? Não bastaria dizer simplesmente Igreja?
Em outras palavras, qual a razão pela qual o cristianismo primitivo, tão simples e direto, se formalizou e institucionalizou tanto? Por que a primitiva Igreja (que provém de ecclesia, ou seja assembleia) chegou a se transformar numa Igreja Católica Apostólica Romana?
A ideia de catolicismo, ou seja de uma Igreja destinada a todos os povos, é antiquíssima, pois se baseia no mandado do próprio Jesus Cristo: "Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. O que crer e for batizado, será salvo; o que, porém, não crer, será condenado” (Mc, 16, 15-16). Há duas palavras, ambas de sentidos muito próximos, que exprimem essa ideia de universalidade: catolicismo e ecumenismo. “Oikouméne” é termo que, em grego, designa o mundo todo, e “katholikós”, no mesmo idioma, significa universal, geral, referente à totalidade.
Até o aparecimento do cristianismo, todas as religiões e todos os deuses eram nacionais. Mesmo entre os hebreus, a religião mosaica era entendida como algo exclusivo do povo de Israel, e isso se consolidou de tal maneira que, até entre os Apóstolos e os primeiros discípulos de Jesus Cristo houve grande resistência psicológica à ideia de uma pregação aberta a todo o gênero humano, fora dos limites do Povo Eleito. Os capítulos 10 e 11 dos Atos dos Apóstolos narram a conversão de Cornélio, o centurião romano batizado por São Pedro, e a profunda estranheza que tal fato causou entre os primeiros cristãos, que não compreendiam como Pedro, sendo judeu, podia ter entrado na casa de um pagão e com ele se sentado à mesa.
Já no século II muitos se referiam à Igreja como Católica, para realçar seu caráter universal e mostrar que não tinham razão os romanos que consideravam os cristãos apenas como uma seita dissidente do Judaísmo. As primeiras versões do Símbolo dos Apóstolos (mais conhecido como Credo), indistintamente falavam em "Creio na Santa Igreja", ou em "Creio na Santa e Católica Igreja"; às vezes a mesma pessoa usava as duas formulações, em diferentes ocasiões. Santo Agostinho, por exemplo, cujos escritos foram preservados, às vezes dizia “creio na Igreja Santa”, às vezes acrescentava o adjetivo Católica. Heinrich Denzinger, que compilou cuidadosamente as primeiras versões do Credo, cita textualmente dois sermões de Santo Agostinho, cada um deles com uma das duas versões. (Enchiridion Symbolorum Definitionum et Declarationum de Rebus Fidei et morum. Barcelona: Herder, ed. XXXII, 1963, p. 17-42).
A adoção da designação Católica, pois, foi um meio de diferenciação, de auto-afirmação, de alteridade em relação ao judaísmo que historicamente era uma religião nacional. Pouco a pouco, por um processo análogo de diferenciação, em relação a alguns orientais, e para realçar sua ligação com os Apóstolos, o costume foi fixando outra designação, a de Apostólica. Isso se prende a um problema teológico muito profundo, de grande importância na teologia: o papel da Tradição Apostólica como fonte da revelação, a par da Bíblia. O Romana acrescentou-se bem mais tarde, depois do Grande Cisma do Oriente (1054), quando boa parte da Igreja do Oriente se separou de Roma e constituiu a chamada Igreja Ortodoxa. Era um elemento de diferenciação. Mais tarde ainda, já no tempo da Contrarreforma, acentuou-se o caráter de diferenciação do termo Romana, desta vez em relação aos protestantes que não aceitavam a autoridade papal.
Os três adjetivos, Católica, Apostólica e Romana, são, pois, posteriores à fundação da Igreja, e foram adotados como elementos de diferenciação de outras confissões religiosas e como melhor definição de uma realidade histórica contínua, desde a Fundação da Igreja.
A designação cristianismo, que inicialmente tinha um sentido unívoco, passou a ter um sentido multívoco e impreciso, abrangendo várias confissões religiosas: os grecocismáticos (ortodoxos), os coptas, os protestantes históricos (luteranos, presbiterianos, episcopalianos, metodistas, adventistas, batistas), os protestantes de origem mais recentes (de vários tipos, pentecostais, mórmons etc.) e até outras que se dizem cristãs, mas não o são em sentido estrito, como, por exemplo, o espiritismo.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras e professor da Unisul. Também é Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História
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