Vimos no artigo anterior o perfil de Príncipe cristão devotado ao bem comum de seu povo idealizado pelos Espelhos medievais. Ainda em princípios do século XV, um príncipe português, o Infante D. Pedro (1392-1449), escreveu uma obra intitulada Da Virtuosa Benfeitoria, oferecida por ele a seu irmão mais velho, o rei D. Duarte (1391-1438), a qual correspondia perfeitamente ao ideal de governante traçado nos Espelhos medievais.
A esse modelo sucederia, no século seguinte, o modelo do Príncipe de Maquiavel, cuja meta não mais era assegurar o bem comum da sociedade, mas garantir sua permanência no poder de qualquer modo, não mais sujeito a uma ordenação moral, mas emancipado dessa obrigação e tendo em vista única e exclusivamente seu próprio bem individual.
Foi em 1532 que Nicolau Maquiavel publicou seu livro O Príncipe, no qual se afastou decididamente do ensinamento tomista de que o governante deve ser bom e virtuoso e governar não visando seu próprio bem, mas o bem comum do seu povo, e apresentou um modelo muito diferente de príncipe. O governante formado na escola de São Tomás devia visar, antes de tudo, a ser abnegado e sacrificado, para o serviço de Deus e o bem de seu povo. Porque serve a Deus, observa seus mandamentos, tem senso moral, senso de justiça, e é capaz de sacrificar seus interesses pessoais sempre que a justiça, ou a caridade lhe pedem. Em oposição a esse perfil moral, Maquiavel propôs o perfil do príncipe renascentista, utilitário, interesseiro, egoísta e inescrupuloso, para o qual os fins justificam os meios. Na verdade, Maquiavel não foi propriamente um inovador ao emancipar os governantes da tutela da Moral, mas apenas reapresentou, com roupagens novas, o modelo de governantes da Antiguidade pagã, que não se sentiam obrigados a obedecer a nenhuma lei moral e governavam apenas pela lei do mais forte.
Nada melhor, para avaliarmos bem o profundo contraste entre a mentalidade do governante ideal do Medievo e o do Renascimento, do que irmos às fontes primárias, vendo documentos de época. Teremos, assim, noção muito viva dos dois modelos de Príncipe, o medieval e o renascentista.
Vejamos, inicialmente, os conselhos que o rei São Luís IX, que governou a França de 1226 a 1270, deixou para seu filho e sucessor Filipe III:
“A primeira coisa que te recomendo é que apliques teu coração no amor de Deus; pois sem isso nada se pode salvar. Guarda-te de fazeres qualquer coisa que desagrade a Deus, ou seja, o pecado mortal; muito pelo contrário, deverias sofrer toda espécie de humilhações e tormentos antes que cometer um único pecado mortal. (...) Ajuda com coração bondoso e compassivo aos pobres, aos infelizes e aos aflitos, conforta-os e auxilia-os em toda a medida que possas. Mantém os bons e abate os maus costumes de teu reino. Não cobices o que é de teu povo e não carregues tua consciência com impostos e tributos. (...) Para ministrar a justiça e garantir o direito de teus súditos, sê leal e inflexível, sem vergar para um lado nem para o outro; mas sustenta no seu direito e apoia na sua demanda o pobre, até que a verdade esteja clara. E se alguém mover uma ação contra ti, não prejulgues nada até que tenhas sabido a verdade; pois então teus magistrados julgarão com mais destemor e com justiça, ou a teu favor ou contra ti. Se algo tiveres que pertence a outro, quer seja obtido por ti quer tenha vindo a ti por teus antepassados, devolve-o sem tardança, e se a questão for duvidosa, faz com que seja examinada, logo e diligentemente, por pessoas sábias. Atenta para que teus povos vivam sob ti em boa paz e na lealdade. Sobretudo, conserva as cidades boas e os costumes do teu reino no estado e na franquia com que teus maiores os conservaram; e se há algo a melhorar, melhora e corrige, e conserva-os em favor e com amor: pois devido à força e à riqueza das grandes cidades, teus súditos e os estrangeiros temerão fazer qualquer coisa contra ti, e especialmente teus pares e teus barões. (...) Evita de empreender, sem grande deliberação, guerra contra um príncipe cristão; e se te for preciso fazê-la, poupa então a santa Igreja e as pessoas que nenhum mal te fizeram. Se guerras e litígios se elevarem entre teus súditos, apazigua-as logo que possas. Cuida de ter bons oficiais e magistrados, e inquire com frequência acerca deles e das pessoas da tua casa: como se mantêm eles, e se neles não há algum vício de grande cobiça, falsidade ou dolo. (...) Cuida para que as despesas de tua casa sejam razoáveis. E por fim, filho caríssimo, manda cantar Missas por minha alma e dizer orações em todo o teu reino, e outorga-me uma parte especial e inteira em todo o bem que fizeres. Dou-te, caríssimo filho, todas as bênçãos que um bom pai pode dar a um filho. Que a bendita Trindade e todos os Santos te guardem e preservem de todos os males; e que Deus te conceda a graça de fazer sempre sua vontade, de sorte que Ele seja honrado por ti e que tu e eu possamos, após esta vida mortal, estar juntos com Ele e louvá-Lo para sempre. Amém.”
Até aqui, o texto do Rei São Luís, ditado pelo monarca pouco antes de morrer, nas costas africanas, durante a 8ª. Cruzada. Comparemos agora com a seguinte passagem de Maquiavel, que discorre sobre como o príncipe que governa não deve ter escrúpulos ou preocupações de ordem moral, mas deve estar disposto a fazer tudo o que for preciso para se manter no poder:
“Resta examinar agora como deve um príncipe comportar-se com os seus súditos e seus amigos. (...) Como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar. E muita gente imaginou repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros. Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz, aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar, e um homem que quiser fazer profissão de bondade, é natural que se arruíne entre tantos que são maus. Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso, segundo a necessidade.” (O Príncipe. Rio de Janeiro: Ediouro, 1980, p. 90)
Em outras palavras, para Maquiavel os fins justificam os meios.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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