Ainda designo como “Guerra do Paraguai” o grande conflito armado que, de dezembro de 1864 a março de 1870, ensanguentou a América do Sul, envolvendo quatro nações. É difícil, depois de velho, mudar um hábito entranhado... Não sei bem por qual motivo, atualmente a historiografia brasileira prefere adotar a designação de “Guerra da Tríplice Aliança”, como tradicionalmente usavam nossos vizinhos argentinos. Seja como for, é ponto pacífico que o estopim desse conflito foi a chamada “questão uruguaia”.
O Uruguai tinha, na segunda metade do século XIX (e em alguma medida conserva ainda hoje) grande importância para a manutenção da paz na América do Sul, como “estado-tampão”. Representava, na América do Sul, papel análogo ao da Confederação Helvética, na Europa. Teoricamente, era um Estado neutro, situado entre duas potências muito maiores e mais fortes, o Império do Brasil e a República Argentina.
A solução da independência uruguaia, assentada ao final da Guerra da Cisplatina, foi inteligente e adequada às necessidades de todos os envolvidos. Nessa guerra, o Brasil perdeu a antiga Província Cisplatina, mas ganhou condições de paz muito mais convenientes ao seu futuro.
Do ponto de vista geográfico, o Uruguai era o prolongamento natural do Brasil, sem solução alguma de continuidade, enquanto do ponto de vista cultural estava muito mais próximo da Argentina, sendo, porém, separado dela pelo caudaloso Rio da Prata. A Geografia unia o Uruguai ao Brasil e o separava da Argentina. A Cultura (incluindo-se nessa designação o idioma e a formação tradicional) aproximava o Uruguai da Argentina e o afastava do Brasil.
Como Brasil e Argentina eram as duas grandes potências rivais, na América do Sul, qualquer uma delas que dominasse o Uruguai teria grandes vantagens sobre a outra, mas teria também que conviver com um contínuo foco de conflitos e tensões. Para complicar a situação, o Uruguai, embora pequeno, era movido por um forte sentimento nacionalista e autonomista, contrapondo-se a brasileiros e argentinos e pretendendo a plena independência. Para complicar mais ainda, numerosas famílias de estancieros uruguaios eram aparentadas com famílias argentinas e também com famílias gaúchas. Muitas possuíam extensas propriedades em território brasileiro, sendo também muito considerável o número de brasileiros que possuíam terras no Uruguai. Era comum grandes famílias atuarem política e militarmente, ao mesmo tempo, nos dois países. Apenas à guisa de exemplo, lembre-se que o grande caudilho gaúcho Gumercindo Saraiva, “o Napoleão dos Pampas”, o genial chefe militar na Revolução Federalista de 1893, era irmão de Aparicio Saravia, que também nasceu em território gaúcho, mas fez toda a sua carreira como chefe militar e político importante no Uruguai.
Nessas circunstâncias tão confusas, e com fronteiras ainda não precisamente delimitadas, os conflitos fronteiriços eram constantes. A solução de ficar o Uruguai independente, como estado-tampão, foi a mais indicada. Era o que melhor podia assegurar o equilíbrio estratégico geral, para toda a região que hoje chamamos Cone Sul.
Teria sido mais ajuizado, para o Uruguai, manter sempre estrita neutralidade e total equidistância entre os dois grandes vizinhos, mas isso não ocorreu em meados do século XIX. Na Argentina, no Uruguai e em vários outros países da Hispano-América, disputavam o poder Blancos e Colorados, que equivaliam, um tanto simplificadamente, a conservadores e liberais. No Brasil, também, os dois partidos dominantes eram o Partido Conservador e o Partido Liberal. Por afinidade político-ideológica, mas, sobretudo, por jogo de interesses, era frequente que as alianças entre grupos políticos dos vários países provocassem distúrbios diplomáticos que, algumas vezes, chegaram a guerras.
Entre 1862 e 1868, estiveram no poder sucessivos gabinetes do Partido Liberal, no Brasil. Na Argentina, desde 1862 estava no poder o Presidente Bartolomé Mitre, liberal e simpático aos colorados. No Uruguai, sempre dividido e em lutas internas, de 1860 a 1864 governou o blanco Bernardo Berro, sendo sucedido em 1864 por Atanásio Aguirre, do Partido Nacional e favorecedor dos blancos. O Paraguai era uma ditadura; depois de Carlos Antonio López ter sido presidente vitalício, em 1862 assumiu a presidência (teoricamente, por 10 anos) seu filho Solano López.
O Uruguai era, como disse, profundamente dividido internamente por grupos e facções de caudilhos, com exércitos próprios, em contínuo enfrentamento, reunidos em torno dos dois grupos (ou tendências) principais, blancos e colorados. Sua disputa interna era tão acirrada que o historiador brasileiro Francisco Doratioto chega a considerar que em 1864 a república vizinha estava vivendo uma verdadeira guerra civil (Revista de História da Biblioteca Nacional, outubro de 2013).
Essa a situação geral no Cone Sul - designação que, obviamente, não se usava na época - às vésperas da Guerra do Paraguai. Continuaremos na próxima semana.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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