Por vezes, tanto na Idade Média quanto no Renascimento, a representação da inveja se dava por meio da chamada “cavalgata dos vícios”, sequência de sete figuras, cada uma das quais alusivas a um dos vícios capitais, tendo como característica que em todas aparecia uma pessoa montada num animal, que podia ser um cavalo, um cão, uma fera, ou uma figura mitológica. A montaria, em via de regra, continha alguma referência simbólica ao vício focalizado no quadro. A própria ideia de “cavalgata” parecia aludir à dinâmica e à velocidade que têm os vícios capitais nas almas que se submetem ao seu império.
Encontramos um belíssimo exemplo no Livro de Horas pintado, bem no início de sua carreira, por Robinet Testard, mestre iluminurista que durante 60 anos (1471-1531) produziu obras de grande valor artístico. Esse Livro de Horas foi composto em Poitiers, por volta de 1475, e se encontra presentemente em Nova York (The Morgan Lybrary & Museum, Ms. 1001). Contém o Ofício de Horas da Virgem Maria, o Ofício de Defuntos, calendários e ladainhas, além de uma série dedicada aos sete pecados capitais, composta para ilustrar os sete Salmos Penitenciais.
Os sete vícios são representados em outras tantas iluminuras, cada uma delas dividida ao meio, tendo na parte superior uma pessoa montada e, na parte de baixo, um demônio tentador e uma cena da vida quotidiana, na qual é retratada, por vezes de modo caricato, a prática do respectivo vício.
No caso concreto da inveja, o cavaleiro monta um cavalo, que controla pelas rédeas com a mão esquerda, e ao mesmo tempo conduz, com a mão direita, uma ave. Sugiro que o leitor encontre essa iluminura em seu computador ou tablet e a amplie bem, para poder apreciar sua beleza e riqueza de pormenores (link: http://ica.themorgan.org/manuscript/page/14/76937). A posição do cavaleiro é tipicamente a de um caçador que leva no braço uma ave de rapina amestrada para a caça. Entretanto, não é um falcão que ele segura, mas o que tem na mão é uma pega, ave do gênero Pica, aparentada com os corvos, de coloração escura no dorso e com os flancos e o abdome claros. Atente-se ao simbolismo: na tradição cultural europeia, a pega não é uma ave nobre, mas é um pássaro barulhento e que tem a má fama de roubar objetos brilhantes e vistosos. Dentro dessa tradição cultural, compreende-se que o cavaleiro se deixe instrumentalizar por boateiros e ladrões da boa reputação alheia, como são de ordinário os invejosos. Compreende-se também que ele caminhe sobre um solo pedregoso, estéril e improdutivo, bem diverso da área coberta de vegetação que figura em segundo plano e do arvoredo avistado mais no fundo da cena. A inveja é, por sua natureza, esterilizadora, porque estiola e mata as potencialidades da alma, porque impede os lados melhores das pessoas de desabrocharem e produzirem bons frutos. Compreende-se também a fisionomia profundamente melancólica do cavaleiro, pois nada se opõe tanto à alegria como a atitude recalcada, ressentida e amargurada do invejoso.
A parte de baixo da iluminura mostra uma representação bem concreta da inveja. Um gordo burguês tem diante de si uma volumosa quantidade de moedas de ouro, enquanto outro, ao seu lado, parece dirigir-lhe a palavra, talvez para propor algum negócio ou fazer alguma solicitação. Ao fundo, dois outros homens, em atitude furtiva e um tanto suspeita – um deles tem o olhar velado por um gorro e o outro se disfarça por trás da corcunda do primeiro – contemplam a cena imbuídos de sentimento de inveja, em relação ao argentário, e talvez também em relação ao que, mais hábil do que eles, conseguiu conversar com o rico mercador e com ele entabular negociações. No centro da cena, outro grupo de homens de menor estatura (e portanto, simbolicamente, de menor importância social e econômica), murmuram entre si, provavelmente a falar mal do burguês rico, que apontam a dedo. Dois deles portam bolsinhas com seu próprio dinheiro, de modo que fica insinuado se tratarem de pequenos burgueses a invejar e criticar o colega bem sucedido.
No lado esquerdo, um grande e vistoso demônio parece, à distância, comandar toda a cena. É a maior e a mais importante das figuras do quadro. Parece esboçar um riso sardônico e zombeteiro. Traz, amarrada à cauda, uma faixa com seu nome escrito: Bellezebuth. Esse é um dos poucos demônios nominalmente referidos na Bíblia. No Livro Segundo dos Reis, é o nome do deus de Acaron, que o rei Acazias, de Israel, acometido por uma doença, mandou consultar para saber se recuperaria a saúde. O profeta Elias o censurou severamente por sua infidelidade, pois em lugar de recorrer ao Senhor Deus de Israel recorria a um deus falso e estrangeiro, venerado pelos filisteus, tradicionais inimigos de Israel, e lhe profetiza como castigo a morte próxima – o que de fato ocorreu. O fato é narrado em 2Rg 1,1-17.
O nome desse deus mitológico passou a designar, na tradição hebraica, um dos principais demônios, como se verifica no Novo Testamento, nos três Evangelhos Sinóticos. Em Mt 12,24-28, Mc 3,22-26 e Lc 11,14-20 reaparece o mesmo nome Belzebut, na boca dos fariseus que acusam Jesus Cristo de expulsar demônios pela virtude de Belzebut, o príncipe de todos os demônios. Jesus Cristo lhes responde apontando a contradição: desde quando o reino do diabo estaria dividido contra si mesmo, para que fosse possível expulsar um demônio pelo poder de outro demônio?
Entre a parte de cima e a de baixo, veem-se escritas algumas palavras latinas: “Beati quorum remissae sunt iniquitates et...” São as palavras iniciais do Salmo 31, o segundo dos sete Salmos Penitenciais: “Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades foram perdoadas e (cujos pecados foram apagados)”. Essas mesmas palavras foram repetidas na Epístola aos Romanos (4,7).
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS, é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História e da Academia Ptracicabana de Letras.
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