Fecho os olhos e penso que consigo imaginar o cenário. O riozinho de águas limpas, repleto de peixes, com verdes margens pelas quais pequenos mamíferos e anfíbios se revezavam, serpenteava as ruas do bairro em que vivo.
Apenas recentemente descobri a existência dele, no entanto. Infelizmente, nada mais tem da beleza e da vida de outrora. Canalizado na década de 60, o Córrego do Sapateiro hoje corre oculto, moribundo sobre o asfalto que o sepultou.
Há cerca de doze anos, quando me mudei para a Vila Clementino, assim denominado um pequeno recorte da conhecida Vila Mariana, na cidade de São Paulo, ouvi, de antigos moradores, já idosos, que tudo aqui em volta fora, um dia, um vale pelo qual um rio passava. Nunca me deram maiores detalhes e, para além de lamentar saber da canalização, também não busquei outras informações.
Há pouco mais de um ano, enquanto caminhava com minhas cachorras, notei que em alguns locais havia a inscrição “Aqui passa o Córrego do Sapateiro”. Muito mais perto do que eu imaginava, há menos de 50 metros de minha casa, assim, escondido pelo avanço brutal da cidade grande, um rio, agora subterrâneo, tem seu curso, o qual se alonga até o Parque do Ibirapuera, onde por fim respira em um pequeno trecho, abastecendo os lagos do local e terminando por desembocar no Rio Pinheiros.
De acordo com uma pesquisa que fiz na internet, ao todo o Córrego do Sapateiro tem 6.600 metros de extensão e, segundo com a fonte consultada, era anteriormente chamado de Rio das Pedras. Teria mudado de nome em função da existência de um curtume que havia nas proximidades do Matadouro Municipal, atual Cinemateca. Naquela região as águas do rio eram tingidas de vermelho, pelo sangue dos animais abatidos.
Não posso deixar de lamentar a forma pela qual são tratados os cursos d’água em nosso país, sobretudo aqueles que se situam nos trechos urbanos. Assoreamento, poluição e canalização têm colocado fim não somente à beleza, mas à vida que vem através da água e por conta dela.
Pela localização do Córrego do Sapateiro, passível de verificação pelo mapa das águas invisíveis de São Paulo e pelas demarcações feitas em alguns locais do bairro, estou certa de que eu poderia avistá-lo da janela do meu quarto e fantasio imagino o quão incrível seria essa visão caso ele tivesse recebido o tratamento adequado.
Por certo que o bairro não teria a mesma conformação e, muito provavelmente, nem mesmo minha casa estaria no mesmo lugar, mas ainda assim eu gostaria que as coisas fossem diferentes, que os seres humanos tivessem uma relação de respeito com o meio ambiente, permitindo que os rios corressem libertos e repletos de vida.
Não creio que um dia o Córrego do Sapateiro volte à superfície, que recupere, mesmo em partes, seu caminho externo. Correrá até o fim dos tempos por dentro da terra, perpassando galerias misteriosas, numa via crucies solitária, escondida dos olhos curiosos de quem nunca o viu ou jamais o esqueceu.
Além de algumas poucas fotos que localizei na internet, não há muitos registros do Corrégo do Sapateiro, o que é uma pena e mais uma prova do descaso com o qual a natureza é tratada. Considero, entretanto, que ainda tenho o mínimo privilégio de ouvir o Córrego ou o que restou dele, já que em um determinado local, aqui bem próximo, é possível escutar as águas correndo pela galeria subterrânea, quase num lamento.
Dizem que um rio nunca é o mesmo, pois suas águas nunca são as mesmas. Nesse e em tantos outros casos, a mais pura e infeliz verdade.
Obs. E você, leitor, sabe alguma coisa sobre a história dos rios canalizados de sua cidade?
CINTHYA NUNES é jornalista, advogada, professora universitária e gostaria, mais do que nunca, de poder molhar os pés nas águas de rios cristalinos – cinthyanvs@gmail.com/www.escriturices.com.br
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