Durante bastante tempo acalentei o desejo de aprender a pintar com tintas de aquarela. Transparente, fluida, colorida, a aquarela tem uma característica muito única: a maior parte de seus resultados é imprevisível. Solúvel em água, os pigmentos se deitam sobre o papel quase como se tivessem vida própria, seguindo um fluxo que resulta invariavelmente singular.
Há alguns anos, em férias em Lins, cidade onde moram meus pais, fiz algumas aulas introdutórias com a talentosa professora Lígia Cavalli. No início, para uma pessoa que gostava de planejar e controlar quase tudo, foi bem complicado abrir mão das invisíveis amarras que insistiam em deixar meus traços aprisionados. Aos poucos fui compreendendo que as aquarelas são animais selvagens e indomáveis e, o mais importante, a aceitar isso.
De lá até hoje fiz alguns outros cursos, presenciais e a distância. Evoluí na técnica, mas nunca deixei de sentir, antes das primeiras pinceladas, uma sensação de estar ingressando em território desconhecido. Aquele friozinho na barriga que se costuma sentir diante do novo é o mais perto de descrever como a aquarela me desafia. Ao começar um novo projeto, por mais simples que seja, sou tomada pela certeza de que não vou conseguir, de que não posso usar uma tinta que cisma em não me obedecer.
Com a pandemia, no intuito de manter minha sanidade mental, passei a assistir alguns vídeos de artistas executando trabalhos e fazendo análise de materiais artísticos. O desejo de voltar a pegar nos pincéis foi mais forte e logo estava perdida novamente no meio do círculo cromático. Para quem gosta de pintura, a aquarela definitivamente é sedutora, mas sobretudo terapêutica.
Tenho tentado transpor algumas das coloridas lições da aquarela para esse momento gris. Assim, busco não prever o que o destino reserva para o restante desse ano ou mesmo para o próximo. A propósito, talvez nem mesmo o porvir esteja com seus planos definidos, à espera, quem sabe, de que a misericórdia lhe faça visita.
Muitas vezes, quando olho para alguma referência que usarei, como foto ou outro desenho, penso na paleta de cores e, de acordo com meu humor ou inspiração, os matizes variam. E quantas foram as variações tonais desse ano! Se a humanidade pensasse em cores, teríamos refletido quase todas as cores existentes.
Na história recente do mundo poucos anos ou talvez nenhum tenha sido tão inesperado e sem controle, em termos mundiais, como 2020. Assim como na aquarela, ninguém ainda sabe como o curso dessas águas irá se comportar. No Brasil ao menos, há quase seis meses em quarentena, em isolamento social que aos poucos se dissolve – e não sei se corretamente – tudo ainda é incerto e experimental.
Aqui o problema é que as pinceladas não se dão todas com o mesmo propósito e muitas tintas são usadas no desejo de ocultar intenções não honestas. Como na aquarela, por sorte, a água marca como quer e, no fim das contas, o desenho se mostra como deve. Acredito que essa seja sempre a esperança.
Na aquarela, usamos água para suavizar as cores e as misturamos entre si para que outras surjam. Bem assim temos feito com nossos sentimentos em 2020. Aprendi, contudo, que não adianta nos anteciparmos, já que o resultado será aquele que deve ser. Tenhamos confiança de que, em algum lugar, há um Pintor esparramando as melhores cores para cada um de nós, livrando-nos do fado das certezas previstas.
CINTHYA NUNES é jornalista, advogada e acredita que as melhores cores surgem das mais inesperadas misturas – cinthyanvs@gmail.com
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