Era quase véspera de Carnaval outra vez e os blocos da cidade se preparavam para a festa de Momo. No rádio um sambinha antigo embalava a tarde quente e parecia hipnotizar as duas moscas preguiçosas que zanzavam pela cozinha. Não entendia direito, mas sempre chorava quando escutava Benito de Paula cantando Retalhos de Cetim.
Esse ano faria diferente dos demais. Embora estivesse muito cansada depois de costurar as fantasias dos mais de cinquenta foliões do Chega de Saudade, havia uma tarefa a concluir. No quartinho que fazia as vezes de ateliê improvisado, havia panos, miçangas e paetês para todo lado. Faltava uma ainda a finalizar. Pegou os óculos velhos, mas imprescindíveis para a tarefa que tinha pela frente e por mais duas horas se dedicou àquela que era a mais importante: a sua própria alegoria.
Separou as linhas cor de esperança e cada em ponto no tecido aplicou um desejo, um sonho. Escolheu pedras de alegria, aproveitando para costurar um pouco de risos bobos também. Pregou botões de sorte, daqueles que desabrocham quando menos se espera. Eram os últimos, guardados para o seu momento especial. Iria vestida de Futuro
Dessa vez conseguiria, tinha certeza. Economizara todas suas vontades e até algumas emoções. Toda uma vida tecendo sonhos alheios. Estava velha e cansada, mas ainda tinha forças para uma derradeira tentativa. Havia reunido todos os retalhes, todas as sobras dos outros. Chegara o dia, por fim. De pedaços de uma existência, havia pano para outra vida, mesmo uma que durasse poucos dias.
A noite já se deitara sobre o mundo, especialmente sobre a velha e pequena casinha que dividia com um cachorro igualmente idoso, cego de um olho. Ela pensava sempre em como seria quando até mesmo cachorro a deixasse. Por isso mesmo precisava ousar. Teria que ser capaz de produzir a melhor fantasia, aquela que mudaria seu destino. Primeiras e últimas vezes se confundiriam
Assim que ficou pronta, colocou-se a admirar sua obra prima. Não tinha dúvidas de que nunca mais seria capaz de semelhante feito, bem como de que não haveria novos carnavais para ela. Esgotara seu estoque de sambas-enredo, derrubara inadvertidamente suas provisões de marchinhas e seu coração não acompanhava mais os acordes ritmados da cuíca e do pandeiro. Após dezenas de horas de exaustivo trabalho, com as mãos em brasa e os olhos ardentes, ela soube que seria um desfile único, definitivo.
Vestiu-se como a um manto sagrado. Pintou o rosto como a um retrato da saudade. Era a imagem do Porvir, o reflexo da espera que se anuncia realizada. Com as pernas ainda vacilantes, ensaiou os primeiros passos. Estava pronta. Fechou as portas do seu passado e arriscou-se pela noite, sambando no ritmo dos sonhos que jaziam dormentes por tanto tempo.
Foi encontrada na terça-feira de Carnaval, nua, desacordada sobre pilhas de retalhos. Vizinhos relataram que era reclusa há décadas, principalmente depois da morte do cãozinho e de perder os movimentos das pernas ao cair de um carro alegórico. Os médicos não conseguiram determinar a causa, mas foram unânimes em atestar que a pobre não resistiria muito tempo.
Na quarta de cinzas ela se despediu, não sem antes desfilar sambando pela última vez, vestida de retalhos de cetim multicor.
CINTHYA NUNES , é jornalista, professora universitária, advogada e às vezes mata seus personagens em alguns Carnavais, mas sempre em legítima defesa – cinthyanvs@gmail.com
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