O dia estava cinzento e chuvoso. Já era fim de tarde e o trânsito estava meio parado sobre o “Minhocão”, o elevado Presidente João Goulart. Pela janela do carro, no banco de trás, eu ia observando a paisagem urbana. Para minha sorte o motorista que eu tinha chamado pelo aplicativo não era daqueles que ficam puxando assunto, pois há dias nos quais não queremos conversar. O rádio ia sintonizado em alguma estação com repertório romântico e quando me dei conta já estava no modo cronista-observadora.
Talvez seja minha impressão, mas parece-me que os prédios ao redor do Minhocão aos poucos vão sendo recuperados e ocupados. Embora ainda haja muitos em situação deplorável e aparentemente vazios ou vandalizados, outros apresentam cenários inusitados. Pelas janelas eu fui invadindo em olhar e pensamento, as casas alheias.
Observando uma das janelas vi um gato e um cachorro sentados, como quem aprecia a paisagem. De início achei que eram estátuas, de tão imóveis que estavam. O cachorro era preto e o gato era frajola. Como se saídos de uma mesma paleta de cores, lado a lado, eram como pequenos guardiões ou meros contempladores atônitos diante de tanto cinza.
Um pouco adiante vi uma ampla janela de vidro sem cortinas. Lá dentro, em um ambiente bem organizado, com paredes novas, um jovem homem manuseava um violino, como se o consertasse. Pelas paredes daquela sala havia dezenas de outros violinos pendurados, tudo muito bem arrumado. Nessa hora, embalada por uma música dos anos 90, a cena parecia cinematográfica e mil estórias começaram a surgir em minha imaginação. Talvez aquela fosse uma imagem refletida do passado, somente para lembrar as pessoas de que a música é repleta de tempos e de pausas.
Alguns metros à frente e uma senhora muito idosa colocava água em numerosos vasos que mantinha em uma pequena sacada. Por uma fresta era possível ver o interior do apartamento e uma sensação meio opressiva se apoderou de mim. Era tudo meio escuro, triste de uma forma que não sei explicar. Quiçá fosse o modo dela se movimentar ou o fato de parecer que estava em meio a uma pequena selva, mas tudo remetia à solidão e tristeza, daquela que causa frio e medo.
Pelo caminho todo segui buscando pelo interior daquelas janelas que se tornaram quase públicas após a construção do Elevado, em 1970. Exibicionistas tem ali um palco perfeito. Desavisados, idem. Por sinal vi um rapaz que se examinava diante de um espelho no banheiro, admirado ou frustrado com o que via, pois isso não posso precisar, mas o curioso é que ele o fazia alheio a outros olhares curiosos. Ou será que estava consciente disso?
O percurso de 3400 metros já acabando e eu ia chegando ao meu destino, mas ainda estava encantada com as dezenas de universos particulares que eram passíveis de serem vistos de onde eu estava. Foi quando meu olhar se encontrou com o de alguém que espiava detrás de uma persiana. Algo de segundos, mas inegável. Dei-me conta de que eu também era objeto da observação alheia. Não pude ver quem era meu observador, mas ele estava lá e disso estou certa. Escorreguei um pouco no banco do carro e abracei minha bolsa, procurando segurança. Morrendo de medo de virar a crônica de algum escritor maluco.
Cinthya Nunes é jornalista, advogada e professora universitária – cinthyanvs@gmail.com
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