Tenho a impressão de que todo o frio que andava guardado nos bolsos de São Pedro foi jogado na Terra há alguns dias. Para um ano no qual aparentemente não haveriam temperaturas baixas aqui no Estado de São Paulo, a semana passada veio desmentir as previsões populares. O frio veio sem timidez, no fim das contas.
Particularmente eu não gosto de frio. Até curto ficar em casa embaixo das cobertas, com o aquecedor ligado, lendo um bom livro e tomando alguma bebida quente. Só que essa é uma imagem edílica do frio e que não espelha a realidade cruel dos dias e das noites de frio extremo para aqueles que vivem à margem de todo conforto.
É com profundo pesar que acompanho notícias sobre pessoas e animais que perderam suas vidas pelas ruas, em decorrência da queda brusca de temperatura. Em uma única noite três moradores de rua faleceram, sucumbindo ao extremo frio. Os animais sequer são contabilizados, tão negligenciados que são. Morrem aos montes por aí, muitos dos quais tendo tutores e que deveriam ser por eles protegidos.
Aqui perto de casa há várias pessoas, a maior parte notadamente usuários de drogas, que moram em barracas improvisadas nas calçadas, cercados de papelão e lixo. Sempre há animais com eles e o que chama a atenção é que em meio a tanta dificuldade e vou aqui me isentar de julgamentos sobre as causas, os cães e gatos estão sempre cobertos ou mesmo vestindo roupinhas. Difícil ver cenas como essas e não pensar no que realmente significa a palavra dividir.
Reclamo do frio quando me levanto, mas tenho um quarto e uma cama aquecidos. Até meus animais de estimação recebem o conforto de um aquecedor nas noites mais frias. Reclamo de sair do banho quente, mas tenho a dádiva corriqueira de nele poder entrar. Reclamo da fome que fica mais aguçada, mas não me falta comida para aplacar os caprichos do meu estômago. Não estou à margem da sociedade, ao contrário de tantos outros, desafortunados.
Em um desses dias gelados, enquanto eu me voltava, bem agasalhada, de um exame demissional, para virar mais uma página de um dos empregos dos quais fui desligada, ouvi um senhor que estava sentado no meio fio, envolto em um cobertor puído, nas imediações da Catedral da Sé, abrindo um sorriso meio banguela, dizer a uma senhora que parara para falar com ele, que estava tudo bem, que era feliz porque tinha saúde. Senti como se o vento frio que cortava meu rosto também estivesse me dando um tapa...
Tento fazer a minha parte, embora saiba que de pouco adianta. O frio, mais do que o calor, desiguala as pessoas, castigando aqueles que são desfavorecidos. A essa altura da minha vida, a palavra “marginal” me remete a vários conceitos, mas principalmente aquele de se estar fora, à margem da dignidade. Fácil gostar dos invernos acolhedores, românticos. Complicado é achar elegância nas sarjetas repletas de maltrapilhos que lutam para não congelarem, silenciando de vez um grito que não foi dado.
CINTHYA NUNES - é jornalista, advogada e professora universitária – cinthyanvs@gmail.com
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