Argélio fez planos durante todo o ano. Comprou um calendário próprio para registrar os projetos futuros, porque um novo período requer planejamento e ele definidamente era um homem que apreciava metas traçadas e objetivos a cumprir. O caos não lhe pertencia e nem o seduzia.
Classificava os propósitos de acordo com as prioridades. Havia cores para destacar as urgências, as necessidades, as utilidades e até mesmo as esperanças. Era importante, ainda, conforme suas crenças, que os meses tivessem equilíbrio, com doses adequadas de desafios e de comodidades. A vida era bem mais fácil assim, em categorias.
É claro que Argélio tivera que fazer concessões para viver sem grandes sobressaltos, mas ele entendia isso como o preço de uma vida pacífica e controlada. Havia mais de dez anos que trabalhava em casa, prestando seus serviços de contador. Saía cada vez menos e supria a maior parte das necessidades usando serviços de entrega.
Não era, no entanto, uma pessoa antissocial, tampouco um esquisitão. Ao contrário, era simpático e, de um jeito conservador, bonito. Apenas se cansara dos altos e baixo de uma vida aleatória, dos riscos da imprevisibilidade e das incertezas. Depois que os pais morreram e que Sofia lhe dera as costas, entendeu como vantagem ser filho único.
E a vida foi seguindo sem muitas complicações ou grandes oscilações para além dos pequenos contratempos. Quase aos quarenta anos, Argélio não tinha muitas expectativas, exceto de terminar os seus dias de modo confortável e seguro. Apreciava a estabilidade dos dias marcados no calendário.
Em uma manhã qualquer, porém, a entrega do mercado não se deu. O motorista sofrera um acidente e não havia ninguém para substituí-lo. Sem provisões para o dia seguinte, eis que as compras também eram calculadas com exatidão, Argélio se viu obrigado a ir ao mercado, lugar que não frequentava há muito tempo.
Imprimiu a lista de compras e, um tanto contrariado, tirou o carro da garagem, o que só fazia para as pequenas viagens inevitáveis, porém agendadas, decorrentes do trabalho, quando era preciso encontrar algum cliente mais exigente. Depois de quinze minutos, já estava com o carrinho pronto para passar pelo caixa. Procurou pelo Luciano, o funcionário que conhecia há mais de uma década, mas no lugar dele encontrou uma pessoa completamente diferente.
Argélio perdeu o fôlego assim que colocou os olhos em Ana. Foi como tomar um soco no meio do estômago. Arriscou perguntar sobre o paradeiro de Luciano e ao saber de sua aposentadoria, cogitou ir embora, mas isso somente traria mais desordem ao seu dia.
Assim que Ana sorriu, porém, Argélio sentiu que as forças lhe faltavam. Devolveu um sorriso imprevisto, deixou de trocar um produto que pegara, por erro, de sabor, aceitou pagar pelo cartão, ao invés do cheque que já levara preenchido, apenas para concorrer ao prêmio especial de fim de ano, que ele sequer sabia o que era.
Naquele dia nada saíra como planejado e isso era fato. Voltando para casa com o número de telefone de Ana anotado no verso do recibo, Argélio se sentiu mais vivo do que nunca. Ainda faria planos, estabeleceria metas, mas já aceitava que uma boa dose de surpresa pode dar cor à vida e que, às vezes, o que parece errado é o certo dando um jeito de chegar até seu destino.
CINTHYA NUNES é jornalista, advogada, professora universitária e deseja aos leitores as boas surpresas da vida em 2023 – cinthyanvs@gmail.com/www.escriturices.com.br
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