Quando eu era criança, morei, como minha família, em uma cidadezinha do interior de São Paulo, em uma chácara, quase na zona rural. Lá comprei um estilingue e ficava escondida, fosse atrás de alguma moita ou fosse encima de alguma árvore e, treinando minha mira, atirava caroços de mamona nos meninos que tentavam matar os muitos passarinhos que viviam soltos por lá.
Na chácara onde morávamos, muitas vezes soltei pássaros que ganhava em gaiolas, todos capturados com alçapões, pequenas armadilhas que eram montadas com comida como atrativo. Um padrinho do meu pai, inclusive, nem se conformava com tantos pássaros que “fugiam” sempre que me eram destinados. Desde aquela época, eu olhava o céu tão imenso e, ao compará-lo com a pequenez (em todos os sentidos) de uma gaiola, era claro que aquilo não estava certo.
Naquela época, assim como ainda sou hoje, era uma admiradora dos pássaros e de toda sua fabulosa engenharia. Gostava de descobrir ninhos e, em vigília discreta, acompanhava o colocar dos ovos, o nascer dos pequenos e o vazio satisfeito do ninho após o os primeiros voos. Embora me falte certa flexibilidade e coragem para seguir subindo em árvores, continuo, em minhas andanças a pé, a observar as árvores à procura de ninhos e, para uma moradora de uma cidade como São Paulo, já encontrei bastante coisa legal, como ninhos de beija-flores e de João-de-barro.
Há alguns anos, um casal de amigos quis me fazer uma surpresa e, quando vi, voltava para casa com uma gaiola com dois periquitos australianos. Eram pouco mais que filhotes, nascidos na casa deles. Na minúscula cela, os pobrezinhos mal podiam se mexer, dando apenas pequenos pulinhos. Aquilo me cortou o coração. Levei-os para casa e, depois de acomodá-los melhor, procurei, por meses, algum santuário, algum lugar confiável para o qual eu os pudesse mandar e no qual pudessem ser soltos, eis que, como não são da fauna brasileira, não podem ser soltos em qualquer lugar. Além de tudo, nascidos em cativeiro, se fossem simplesmente soltos, morreriam rapidamente, ou de fome ou vitimados por predadores.
Infelizmente, depois de algumas promessas e várias tentativas, nada consegui e eles foram ficando. Para tornar o suplicio deles um pouco menor, mandei fazer um viveiro no qual eles podem ao menos dar pequenos voos e eu, todos os dias, coloco água para banho, frutas, verduras e sementes, além de coloca-los para tomar sol. Sei que não é nada perto do que poderiam ter vivido, mas eu me sinto como o senhorio de um inquilino que não está por ser convidado, mas por ser prisioneiro. Cuidar deles o melhor que posso é o mínimo que posso fazer.
Olho para o céu, aquele mesmo céu da minha infância e penso em como as pombas são mais felizes, livres para voar e livres da inveja humana. Aliás, não tenho a menor dúvida de que as aves são feitas prisioneiras exatamente por serem capazes do que os humanos não são. Se prendermos a respiração, somos capazes, ainda que por poucos minutos, de nos sentirmos como os peixes, mas o céu é território que não nos pertence, não sem aparatos artificiais. Invejosos das asas que não possuímos, historicamente aprisionamos as criaturas aladas, pequenas joias da natureza e, ouvindo seu lamento, fingimos que cantam para nos alegrar.
Livres de nossa cobiça, as pombas, sem belas penas ou singelo cantar, seguem suas vidas, donas do céu, protegidas das gaiolas nas quais a humanidade aprisiona tudo aquilo que não entende e tudo aquilo que não pode ser...
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA - Advogada, mestra em Direito, professora universitária e escritora - São Paulo.
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