Um dia, meio sem querer, acabei tendo um poodle comigo. Confesso que, amante dos vira-latas que sempre fui, seria muito pouco provável que fosse uma escolha. Comprado em uma loja de animais, outra situação para a qual tenho várias ressalvas, o poodle mini preto, batizado de Floquinho, era da minha irmã. Depois de uma curta temporada na casa da minha mãe, vendo que o cachorrinho de pouco mais de um ano estava triste sozinho, acabei levando-o comigo.
Inicialmente era somente para que eu achasse um companheiro para ele. Após a adaptação, eu o devolveria para casa dos meus pais. E foi assim que o Peteco, um salsicha caramelo, com cerca de 5 meses, que foi abandonado pelos antigos donos, acabou indo parar lá em casa também. Logo de cara os dois se deram muito bem. Em verdade, muito mais porque o Floquinho, que era meio ranzinza com pessoas, era completamente tolerante com outros cães.
Nem preciso dizer que a tal devolução jamais ocorreu. Em pouco tempo os dois se tornaram meus cachorros, donos da minha casa, parte da minha vida. Foram muitas as viagens de carro que fizemos, nós três, pelas estradas do interior de São Paulo. Era até engraçado: sempre que me viam fazer as malas, já condicionados, pulavam para dentro do carro, no banco traseiro e de lá não queriam mais sair. Mesmo que eu ainda fosse demorar algumas horas para sair. Assim, para evitar que os dois se antecipassem, certa vez fechei as portas do carro e apenas fui guardando as malas. Voltei para pegar algo dentro de casa e, quando voltei, encontrei os dois preparados, a postos dentro do porta-malas! O medo de ficar para traz foi capaz de torná-los cães saltadores.
Quando me mudei para São Paulo, vinda do interior, os dois, por óbvio vieram junto. Aliás, sempre foi uma promessa que fiz a ambos, a de que estaríamos juntos até o fim, pouco importando quem de nós se fosse dessa vida primeiro. Não concebo que animais de estimação sejam repassados aos outros, até porque estima, segundo entendo, pode se traduzir, nesse caso, em um misto de amizade e amor. E amor que se preza, diga-se de passagem, traz consigo a lealdade.
Depois de um tempo os meus dois amiguinhos adotaram uma dinâmica interessante. Quando saíamos para passear o Peteco ia sem coleira, puxando pela boca a coleira do Floquinho. Acabaram se tornando atração por onde passavam. Era comum as pessoas pararem para perguntar, para olhar os dois e nos perguntarem se havíamos ensinado o truque. O fato é que nunca ensinamos nada, ao menos nada que tenha dado certo. Tentamos que fizessem xixi nos lugares certos, mas a verdade é faziam onde bem quisessem e acabamos nos tornando especialistas em métodos de fazer o cheiro de xixi de cachorro desaparecer.
Uma coisa engraçada é que os dois trocavam de personalidade. Dentro de casa o Floquinho sempre foi ranzinza e o Peteco a pura mansidão. Só com as pessoas, registre-se. Na rua, ao contrário, o Peteco se tornava um animal feroz, latindo para qualquer cachorro que estivesse em seu raio de visão, enquanto o Floquinho simplesmente confraternizava com todos, como se fosse um cãozinho de pelúcia.
Dentro de casa, por outro lado, é preciso dizer que os dois nunca se comportaram de forma exemplar. Perdi as contas de quantas vezes chegamos em casa e encontramos cenas dignas de um furacão. Sacos de lixo rasgados, panos e roupas rasgadas já estavam na rotina da casa. Só quase não fui capaz de perdoar quando cheguei em casa e descobri minhas calopsitas covardemente assassinadas, mas tenho fortes motivos para crer que esse crime bárbaro foi obra exclusiva do Peteco, que até já tinha antecedentes desfavoráveis envolvendo ratos e pombas.
E no meio de tudo isso, dessa loucura toda, fomos compondo uma família ao nosso jeito. Cada qual com seu gênio e comportamento característico. Um belo dia chegaram as gatas e quem as recebeu com amor foi o Floquinho, a quem apelidados de mini babá, já que cuidava delas enquanto eram bem pequenas. Embora fosse um cachorrinho capaz de morder o veterinário que o vacinava, o Floquinho era devotado ao Peteco. Brincávamos que tinham um relacionamento, um amor deles. Eram inseparáveis.
Mas um dia, como acontece com tudo que vive nesse mundo, o Floquinho, que costuma nos puxar enquanto passeávamos, começou a não conseguir andar mais do que um quarteirão e a passos muito lentos. Dois meses depois, sofrendo do coração, passou a usar fraldas e emagreceu muito. Tornou-se, por outro lado, um paciente exemplar, incapaz de morder mesmo quando eu era obrigada a dar-lhe remédio à força, goela abaixo.
Foram dois meses assim, enquanto alternávamos o sentimento de esperança de uma melhora e o medo de que ele sofresse. Até que em um momento, após tomar banho, ele morreu assim que chegou na porta de casa. Seu coração, depois de quinze anos e meio, resolveu por bem parar. Até hoje eu o procuro pela casa ou mesmo chamo pelo seu nome para que vá comer. Sei que é o curso da vida, mas é exatamente isso que me assusta. Olhando para traz, o sentimento que tenho agora é que não se passaram quinze anos desde o dia em que resolvi trazê-lo comigo, mas apenas e tão somente 15 minutos, um ligeiro sopro no tempo.
Se fosse preciso, se me fosse dada a chance, faria tudo de novo.
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA - Advogada, mestra em Direito, professora universitária e escritora - São Paulo. - cinthyanvs@gmail.com
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