PAZ - Blogue luso-brasileiro
Sábado, 23 de Julho de 2016
HUMBERTO PINHO DA SILVA - AS CANASTRINHAS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em final dos anos cinquenta, passei aprazível estadia, na Vilariça, na amena e tranquila: “ Quinta do Bem”.

Tive a felicidade, na ocasião, de travar conhecimento com simpática velhinha, de rosto encarquilhado pelo sol, e cabelo alvo, como a neve, amiga da mulher do feitor.

Ainda havia, nesse recuado tempo, nas nossas pitorescas aldeias transmontanas, amorosas  avozinhas, eximias narradoras de curiosas histórias, que entretiam  longas horas de serão, e educavam os sentimentos dos ouvintes.

Uma, que escutei, entre muitas, no meu tempo de menino, recheada de encantadores e saborosos termos vernáculos, paralelamente com preciosos provincianismos, é a que vos vou contar:

Havia, há muitos e muitos anos, na comarca de Vila Flor  - "A flor das Vilas", como o grande vilaflorense, Raul de Sá Correia, gostava de dizer, - pastorzinha, que não conhecia letras, por mais rodondinhas que fossem, nem povoado, além da humilde aldeia, onde nascera e se criara.

Numa luminosa e fresca manhã de Primavera, batida de sol doirado e resplandecente,  quando as amendoeiras se toucavam de vistosas florzinhas brancas, assentou ir à Vila.

Sobre a cabeça, colocou o sedoso lenço de seda escarlate, que a madrinha lhe dera pelo aniversário;  calçou delicadas chinelinhas de corda; ataviou-se com o melhor xaile que tinha; e abalou, alegremente, entoando loas à Senhora da Assunção - a que está no Cabeço, - em demanda de semente, para amanhar a coirela.

Pasmou-se, uma vez na Vila, com as casas branqueadas a cal - na sua aldeia, todas eram escuras, de pedra xistosas; - e com os artísticos umbrais, bem lavrados, que embelezavam portas e janelas, de igrejas e velhíssimas casas senhoriais.

Extasiada com tudo que via, deambulava, num encantamento, pelas tortuosas ruas, da antiquíssima Vila.

Porém, ao perpassar pela Matriz - cuja a riqueza dos ornatos do pórtico, a encantou, - verifica, atónita, que do interior do velho templo, saiam harmoniosos cânticos, que mais assemelhavam, hinos angélicos, do que simples coplas, entoadas  por vozes humanas.

 

 

 

Porta da Igreja Matriz de Vila Flor (1).jpg

 

 

 

 

Tocada pela curiosidade, quedou-se a escutar.

No adro, jovem aperaltado, desenhava com a ponteira da bengala de ébano, caprichosos arabescos, na terra mole, enquanto  esperava a namorada, que assistia ao culto.

Com esforço, vencendo o natural enleio, que sempre a dominava, quando falava com estranhos, perguntou-lhe: o que fazia esse mar de gente, em fato domingueiro, dentro do templo.

Para sua desdita, aconteceu ser maganão, o janota, e para se divertir da inocente pastorzinha, disse-lhe que oravam desse jeito:

-”Rezam, assim: Uma canastrinha, mais duas canastrinhas, são: três canastrinhas…”

Terminado o culto, a ovelheira, entrou sorrateiramente, no templo. Ajoelhou-se. Pôs as mãos na posição de rezar, conforme o jovem lhe ensinara, e repetiu, fervorosamente, a “oração” que lhe indicara.

Nesse preciso momento, passa o padre. Olhou. E o que viu?! Volitarem ao seu redor, três formosos e translúcidos Serafins.

Intrigado,  acercou-se, pasmado com o que vira, e interroga meigamente a pastora:

-O que rezas, minha filha?!…”

Encolhida, a pastorita, muito enleada, respondeu, baixando os olhos:

- “ O que me ensinaram: Três canastrinhas, mais duas canastrinhas. são: três canastrinhas…”

Ao escutar a grotesca “oração”, o cura, lembrou-se do bom Frei Bartolomeu dos Mártires, ao visitar terras de Barroso, e aconselhou-a a voltar, para lhe ensinar a doutrina.

Alegre, como um cuco, a pastorzinha, no domingo seguinte, foi à Vila…; e tornou a voltar….; mas nunca mais viu, o piedoso abade: anjos, luzes, resplendores…Nada!…

Inquerida a razão de estar triste, a pegureira, de mãos erguidas, suplicou: que a deixassem rezar a sua “oração”, porque, ao dize-la, sentia que Deus estava presente.

Contristado e relutante, o padre condescendeu, compreendendo que os designos do Senhor são bem diferentes do pensar dos homens…

Estava o abade a pregar as promessas divinas, quando enxerga, estupefacto, que lá no fundo do templo, ao redor da pastorzinha, havia um imenso halo, tão brilhante como o Sol; e translúcidos Serafins, rezavam de joelhos, ao seu lado.

Volvendo os olhos lacrimosos para o Céu, o padre lembrou-se das Bem -  Aventuranças:

“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino do Céu!...”

Velhinha, no humilde catre  da sua humilde casa, a pastora,entrega a alma ao Criador; e amparada por formosos anjos, entra no Céu, rezando:

"Uma canastrinha, mais duas canastrinhas, são três canastrinhas!..."

 

 

 

HUMBERTO PINHO DA SILVA   -   Porto, Portugal

 



publicado por Luso-brasileiro às 17:42
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
arquivos

Julho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

favoritos

JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINEL...

pesquisar
 
links