No Dia dos Mortos também devemos refletir sobre a atual imunização da sociedade em relação à morte, quer por interesses de natureza política, social ou econômica, quer por motivos individuais, frutos do próprio egoísmo e da insensibilidade com que convivemos com nossos semelhantes. Vislumbra-se com tal quadro, um absoluto desrespeito a aspectos de ordem manifestamente moral, religiosa e jurídica.
No século X, o monge francês Odilon Cluny iniciou uma série de rezas e festas sacras para os cristãos mortos, em 02 de novembro de cada ano, costume que se espalhou por outras religiões. As pessoas acreditavam que, rezando para os falecidos, nesse dia, os vivos diminuiriam os castigos das almas que pecaram durante a vida terrena. Após quatro séculos, a Igreja Católica oficializou a comemoração, instituindo o Dia de Finados ou Dia dos Mortos, que chegou ao Brasil pelos portugueses. Na ocasião, os templos e os cemitérios são visitados, os túmulos decorados com flores e milhares de velas acesas, aspectos que já se tornaram tradicionais.
A data nos convida a refletir sobre a morte. Constatamos que raramente nos detemos a meditar e nem mesmo, lembramos dela, evento comum a toda a humanidade, inevitável e certo. Configura-se, efetivamente, num dos poucos fenômenos acerca dos quais temos absoluta certeza: basta ter nascido para que se venha a morrer. Tal desprezo se prende ao fato de que grande parte da sociedade, seja por interesses de ordem política, social ou econômica, seja por manifesto egoísmo ou insensibilidade, imunizou-se em relação aos seus efeitos.
Nessa trilha, invoquemos o agrônomo e doutor em Ecologia, Evaristo Eduardo de Miranda, ministro de exéquias (um leigo revestido pela Igreja com a missão de encomendar corpos):- “...a morte é uma denúncia violenta contra as ilusões e a busca de bens passageiros que não remetem o ser humano à eternidade. A morte é o maior antídoto contra a alienação humana, pois ela nos dá o conceito de nossa finitude. A exemplo do que acontecia com o sexo, antes da revolução sexual, a morte se tornou um tabu” (revista “Família Cristã”- 11/1998- pág. 09) (os grifos são nossos).
Por outro lado, a morte está sendo cada vez mais banalizada em nosso país e as conseqüências deste quadro, geram uma situação de quase absoluto desprendimento (“rei posto, rei morto”). Transformada em mera fatalidade biológica, as pessoas não se importam mais com a vida dos outros e ela passou a ser um evento quase neutro, revestido da aparência de mero espetáculo. Tanto que se assiste pela TV, a centenas de mortes por dia, numa visível demonstração de abandalhamento de princípios, que rendem exclusivamente, altos índices de audiência. “...Não morre o telespectador que, do lado de cá da tela, encara a morte como mera anulação do outro, sem choro nem velas, e se impregna de certa onipotência, pois a morte não o atinge. Pode desafia-la cavalgando uma moto, fazendo sexo sem preocupações, portando-se como se fosse o único a ficar eternamente vivo” (Frei Betto – “O Estado de São Paulo”- 02/11/04- pág. A.2).
O Direito consagra a vida como o mais valioso bem a ser protegido e impõe respeito aos mortos, tanto que considera crime a violação de sepultaras. Utiliza-se de conceitos científicos para caracterizá-la nos seus diversos reflexos legais (de acordo com a Resolução 1.346/91 do Conselho Federal de Medicina – CFM, a morte é diagnostica quando não há qualquer função cerebral) e incentiva a luta pela vida até o último instante, ao proibir a eutanásia (método pelo qual se procura abreviar a existência de um doente incurável, ainda que a seu pedido ou do seu representante legal). Apesar de todas essas circunstâncias, as pessoas ainda não tratam a morte como sendo rito de passagem, como deveriam entendê-la, tanto no aspecto religioso, como no moral, nem lhe outorgam as condições de dignidade exigidas por sua concepção jurídica.
Tais constatações nos levam à triste conclusão de que a solidariedade está se exaurindo no ser humano, tanto na vida – Dom maior de Deus -, como no final desta. Mais do que nunca, precisamos reverter o quadro sombrio que assola nossa natureza, voltando a encarar a existência e o seu final, inclusive, com o respeito e o rigor que suscitam, convivendo fraterna e responsavelmente com nossos semelhantes. A efetivação deste último objetivo inclui a busca do bem comum, no pleno respeito à dignidade humana e na garantia dos direitos que daí decorre. A morte realmente é uma circunstância normal do ciclo da vida, que não devemos temer, ao contrário, necessitamos acolhe-la com serenidade, requerendo-se para tanto, empenho no progresso de conversão pessoal e no testemunho de realizações fraternas.
REFLEXÃO
O Dr. Evaldo D’Assumpção, de Belo Horizonte (MG), fundador do “Cosmo”, instituição que oferece acompanhamento aos doentes terminais e seus parentes, sustenta que a angústia existencial que hoje toma conta do homem provém da negação que há depois da morte. “Em vez de crescer no conhecimento das verdades da fé como busca crescer nas ciências, o homem simplesmente as nega, abandonando tudo, como se, negando a própria transcendência, ele a fizesse desaparecer”. Há outro aspecto ressaltado por ele: “Numa sociedade onde as pessoas são educadas para negar a morte, onde o consumismo e as solicitações ao prazer nos incompatibilizam com ela, onde o apego exige a morte da morte, não é de se estranhar às dificuldades que todos nós temos para enfrentar esta realidade concreta que faz parte indivisível da vida. E mesmo se superarmos todos esses obstáculos, ainda restará um temor: o medo de morrer” (Revista Família Cristã, 11.89, p. 34. In: MARTINELLI, João Carlos José, Direito à Vida, Ed. Literarte, 2000).
JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINELLI é advogado, jornalista, escritor e professor universitário (martinelliadv@hotmail.com)
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