Tenho dúvidas sobre a pretensa racionalidade da espécie. Talvez por haver judicado por quase quarenta anos, além dos quatro no Ministério Público. A jurisdição da família é desgastante. Ali se vê a mesquinhez que nem sempre se encontra na esfera criminal. Infrações penais chegam a ser eticamente menos chocantes do que a volúpia com que ex-cônjuges se agridem, para isso se servindo de uma arma poderosa – o filho – ou do egoísmo com que se comportam os herdeiros.
Não estou falando apenas no Brasil, esta República judicial, onde tudo vira processo e aprofunda as divergências. A irracionalidade parece habitar a mente humana. Até em reinos de civilização milenar ela acomete pessoas insuspeitas. Por exemplo: em Londres, Sir Roy Strong, antigo diretor da National Portrait Gallery e do respeitadíssimo Victoria and Albert Museum, formou durante toda a sua vida um belo jardim.
Belo é pouco: um jardim magnífico. Proeza paisagística preparada carinhosamente durante décadas. A mulher partiu para a eternidade e Sir Roy percebeu que a hora dele também estava próxima. Com a generosa mentalidade britânica, fez um testamento para legar o jardim ao National Trust, instituição responsável pela preservação do patrimônio inglês. Mas ainda destinou importância suficiente para que ele fosse preservado e merecesse natural continuidade.
Surpresa: o National Trust recusou a oferta. Não viu valor preservável no jardim. Então Sir Roy mudou o testamento. Deixou instruções precisas para que o jardim, logo que ele morra, seja destruído. Agora sim, os ingleses se chocaram. Condenam o vandalismo “post-mortem” de Sir Roy. Mas não condenaram a insensibilidade dos burocratas do National Trust que nada viram no jardim que ensejasse a sua conservação.
Thomas Hobbes tinha razão. O homem é o lobo do homem. A vida sem disciplina e autoridade é a guerra de todos contra todos. Onde está a natural benevolência proclamada por Rousseau? Ele que deixou seus cinco filhos na “roda” dos enjeitados, escreveu a ficção da bondade ínsita ao ser humano. Ou estou sendo muito pessimista?
Sugiro aos otimistas que façam estágio nas Varas da Família e Sucessões e se enterneçam com os exemplos prolíficos do desprendimento, da generosidade e da solidariedade entre herdeiros – quase sempre o mesmo sangue – ou entre parceiros que se escolheram para uma vida em comum, “até que a morte os separe”.
JOSÉ RENATO NALINI é presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para o biênio 2014/2015. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.