Sei fatos da vida dela que me levam a traduzir algumas de suas colocações, sentimentos e atitudes.
Semana passada, comentou que se considera bem resolvida. Não é brincadeira tudo que passou. Disse a uma parente que aquilo que me conta se transforma em crônica. Acrescentou que não se olha no espelho, pois nele se acha feia. A parente retrucou que não era bem resolvida. Quis interpretação minha.
Precisaria ser psicóloga para decifrar o seu “mistério” do espelho, já que demonstra autoestima privilegiada.
Lembrei-me do conto “O Espelho” de Machado de Assis, publicado em 8 de setembro de 1882 e da análise sobre ele da Doutora em Estudos da Cultura, Rebeca Fuks.
Rebeca escreve: “O protagonista, Jacobina, encontra-se com quatro amigos em uma casa no bairro de Santa Teresa. Era noite e os senhores discutiam questões filosóficas. Tinham todos cerca de quarenta e cinquenta anos e debatiam efusivamente enquanto Jacobina assistia à discussão intervindo pouco e pontualmente. Até que, a meio da noite, o protagonista pede a palavra para contar um caso que aconteceu consigo. Ele se serve da história pessoal para ilustrar e defender a tese de que o ser humano tem duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica”.
De acordo com sua análise, na tese de Jacobina, a alma interna é quem realmente somos e a externa aquilo que outros pensam de nós. Ou seja, o modo como os demais nos enxergam pode influenciar a nossa natureza e até modificá-la e isso é fato.
Refleti sobre seu incômodo em se ver no espelho, se possui facilidade em convivência, não é acuada pelos acontecimentos. Parece-me que, ao se defrontar com o espelho, observa o que veio de fora sobre ela: “cuidados” com violência, falta de ternura e compreensão, a dor em lugar de boneca, fugas para não explodirem seus sentimentos represados, a rua, a sensação de, “embora mulher moça novinha - como ela mesma diz - e bonita, mas maltrapilha, vista apenas como um pedaço de carne que suja”. Guarda todas as coisas na alma, afirma, porém demonstra estar liberta. O que lhe falta, no entanto, na minha opinião, é constatar que foi vítima e não responsável pelos caminhos/descaminhos pelos quais andou. Impuseram-lhe uma trajetória de vida.
Infância mal conduzida gera desajustes.
Recordo-me da moça que, aos dez anos, década de 60, após perder o pai e a mãe, vivendo em situação de pobreza com a irmã mais velha e filhos, pegava, com as sobrinhas, em latinhas de cera, a comida depositada nos latões de lixo de um famoso restaurante. Os jovens de família de classe média alta, que ali ficavam, usavam o corpo das meninas em troca de doces, lanches... Ela não admite que foi vítima, assim como as sobrinhas.
Clarice Lispector escreveu: “O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio... esse alguém percebeu o seu mistério de coisa”.
No espelho, em que ela olha, estão as crateras que provocaram de fora para dentro, mas que, mesmo assim, a vejo colocando nelas mudas de primavera.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE -
Professora e cronista. Coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil.
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