Tarde quente de terça-feira. Ainda de férias. Após o teste ergométrico com o propósito de avaliação cardiológica, optei por voltar a pé para casa. Bem distante um ponto do outro. Desejava pisar sobre um fato da véspera, que me apertava em excesso o peito. Considerava que a caminhada me ajudaria. Existem, não obstante os locais serem de meu cotidiano, novas cenas, que ao passar de carro não percebo. Nas minhas andanças a pé, não importa o motivo, busco paisagens diversas. Às vezes, nesse cenário há uma flor esquálida que brotou na sarjeta e me emociona.
Um pouco mais da metade do percurso, decidi entrar na lanchonete de um supermercado e tomar um suco. Minutos depois, vi que me observavam seis meninos de faixa etária aproximada de oito a onze anos, vestidos com simplicidade. Detive-me no olhar deles. Incomodam-me em demasia meninos e meninas com olhos de fome. Mexem com minhas entranhas. Fome de colo, de proteção, de meiguice, de compreensão, de brinquedo, de mar e de montanha, de paz, de aconchego. Fome de entender o que se encontra na lousa, nos livros e em seu caderno. Fome de inclusão no bairro onde mora, na escola, dentre os de sua faixa etária. Fome de que as diferenças, de todos os tipos, não os joguem para as margens. Fome de família. Fome de saber que é criatura amada por Deus. Fome de respeito por seu corpo e suas emoções. Fome de moradia apropriada, com água, luz e canalização de esgoto. Fome de mãe e pai que assumam seus filhos. Fome de ouvir o cântico com alma de seus antepassados. Fome de viagens que rompam as fronteiras que lhe impuseram nas periferias. Fome de tratamento médico e dentário adequados. Fome de alimento. Fome de esperança em seus sonhos. E quantas outras fomes, meu Deus, eles exalam!
Os meninos que me espreitavam, vindos do morro do Jardim São Camilo, tinham fome, no passeio que se deram, de salgadinho de aniversário. Notaram que os fitava com aconchego. O menor deles se aproximou e me perguntou sobre a possibilidade de comprar uma coxinha. Dividiriam em seis partes. Fome de guloseimas.
Com as coxinhas e os refrigerantes, sentaram-se de forma a não me perder de vista. Não lhes perguntei nada e também não puxaram conversa. Trocamos sorrisos.
Interrompemos o nosso diálogo de encanto ao chegar uma amiga. Na hora em que terminaram o seu lanchinho, voltaram-se para mim e o maior deles encostou o dedo polegar no coração e fez sinal de positivo. Abracei-o com a expressão de meu rosto.
Na quinta-feira, a jornalista e escritora Ariadne Gattolini, que sente, escreve e pensa a justiça social com seriedade e compaixão, enviou-me o artigo “Não são pobres, são os excluídos da festa”, do jornalista e escritor espanhol Juan Arias, no periódico “El Pais”. Fantástico! Arias comenta que não devemos chamar os pobres assim. No sentido etimológico latino, pobre significa estéril, parir ou gerar pouco. Aqueles que chamamos de pobres, segundo ele, são os excluídos da festa, os sem oportunidades de serem como nós. Concordo com Juan que os pobres não precisam de migalhas que nossa benevolência joga a eles. “Eles só precisam ter a permissão de ter acesso por direito à nossa festa de pessoas satisfeitas, sem fechar a porta na cara deles e sem chamar a polícia para que sua presença incômoda seja mantida à distância”.
Ao saber do acontecido, a minha amiga mencionou que um dos responsáveis pelo supermercado pediu a ela, há algumas semanas, que não pagasse mais lanche a um jovem que se aproximara. Outro trecho do artigo no “El Pais” me fez refletir sobre o fato: “Quem interessa que continue havendo pobres, contentes com os restos de nosso banquete, é o poder, porque ele não existiria se não houvesse aqueles que poderiam ser dominados e servidos por ele”. Quem saboreia um lanche inteiro não precisa de migalhas.
Enquanto vivenciei a situação com os meninos, esqueci-me do acontecido no dia anterior. Permiti, por alguns instantes, direito deles, que “viessem para a festa” e recebi o que mais precisava: ternura santificada que unge feridas.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil.
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