Escrevi sobre ele duas vezes. Pediu-me uma terceira. Creio que deixo de dizer algo que seja essencial.
Conhecemo-nos em meados da década de 90. Foi ele que se aproximou, questionando por que não iniciávamos, como para as mulheres que se prostituíam no centro da cidade, um projeto para os travestis. Senti-me chamada a isso, no entanto não conseguiria conciliar o trabalho da Pastoral da Mulher, a da Carcerária – na época - e minha vida pessoal. A partir dessa indagação, todavia, aterrissei no entorno de seu mundo.
Conta-me que há três anos e quatro meses “vive uma vida que vale a pena ser vivida”, distante do comércio do sexo e do uso de drogas.
Insiste que relembre quem ele era, ao se dirigir a mim no Jardim das Rosas, vestido com trajes sumários, à espera de fregueses que lhe garantissem o valor necessário para pedras de crack. Não teme o passado, ao mudar o presente. Recupero outras imagens de outrora: duas delas atrás das grandes, acusado de furto. Absolvido, logo depois, por insuficiência de provas. Golpeado por estilete, em uma madrugada, mandou-me recado urgente com o propósito de que fosse visitá-lo no hospital. Desejava proteção. Indignei-me ao saber que o chamavam por apelidos jocosos naquele local, o que doía mais que a ferida. Tomei sua defesa.
A fé em Deus, a decisão firme e os Narcóticos Anônimos o salvaram.
Comenta que, nos testemunhos, as pessoas se assustam ao dizer no que a droga o transformara.
Jamais me espantei com seu aspecto em ruínas. Nutria por ele compaixão. Meu olhar já havia perdido diferentes máscaras a partir do contato com as mulheres em situação de prostituição. E olhar sem máscaras faz com que se enxergue o ser humano por inteiro: sua história, o coração, a alma em busca de uma fagulha que ilumine as trevas.
Aquilo que me assombrou e continua me assombrando foi o que fizeram do seu corpo de menino. E assim acontece com diversas crianças do mundo inteiro, condenadas a perder a sua personalidade.
Pouco a pouco, foi resgatando sua imagem e semelhança de Deus. Mudou-se para cidade diferente, reside com a irmã e a família, trabalha e estuda. Suas carnes não estão mais à venda e suas emoções não fogem na viagem ilusória das drogas.
Juntou os destroços de seu ser em obra renovada e se tornou convite à restauração dos que se sentem entulho.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - Professora, coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil.
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