"Andá com fé eu vou/Que a fé não costuma faiá".
Este famoso refrão da música "Andar com fé", composta em 1982 por Gilberto Gil, é repetido até hoje por tantos cantores e públicos que não cansam de entoar seus versos simples.
Muito provavelmente foram poucos (se houve) os que questionaram a maneira da escrita do verbo "falhar". Talvez porque a maneira como a palavra é cantada está tão intrinsecamente ligada à força e ao significado que almejam, somados ao ritmo, de cunho popular, que se torna irrelevante a gramática.
Segundo o próprio autor: "O uso do 'faiá' é assumido com a intenção de legitimar uma forma popular contra a hegemonia do bem falar das elites. É uma homenagem ao linguajar caipira, ao modo popular mineiro, paulista, baiano - brasileiro, enfim - de falar 'falhar' no interior.".
Isto foi em 1982, quando ainda não tínhamos essa avalanche de letras e músicas (embora estejam distantes de ser uma coisa e outra) que assassinam a nossa língua, sem dó nem piedade.
Hoje, olhando esse "faiá" percebemos que não houve falha nenhuma, mas a utilização de um recurso apropriado e cheio das melhores intenções.
Gil salienta que: "É quase como se a frase da canção não pudesse ser verdade se o verbo fosse pronunciado corretamente - o que seria um erro...".
A respeito disto, o letrista Carlos Rennó fez uma interessante observação: "'Faiá' é coração, 'falhar' é cabeça, e fé é coração.".
Na letra original ainda encontramos o "andá", também uma variante, via licença poética, de "andar". Assim, é possível encontrar uma intenção de rima do poeta Gil, entre a primeira palavra do primeiro verso e a última palavra do segundo verso (o exemplo citado está na frase que abre este artigo).
O autor utiliza-se do recurso da repetição para enfatizar sua intenção. A palavra "fé" é mencionada inúmeras vezes, tanto no refrão, quanto nas estrofes. Consegue colocar fé até onde ela, a princípio, não existiria: "Mesmo a quem não tem fé/A fé costuma acompanhar/Ô ô/Pelo sim, pelo não.".
Que saudade de ouvir boas canções por aí, pelas ruas, pelos bares, pelas rádios, pelas vozes populares... A boa música parece que se confinou a guetos e deve ser ouvida quase que clandestinamente, como se estranha fosse.
Estranhos são estes tempos... estranho eu.
RENATA IACOVINO, poeta e cantora / facebook.com/oficialrenataiacovino/ reiacovino@uol.com.br
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