“Gosto, desgosto, carta, convite, casamento” ou “gosto, desgosto, carta, encontro, convite, casamento”.
Manipulávamos o jogo de forma a escolher a própria sorte conforme a pretendêssemos, durante a contagem de urubus bem acima de nossas infantes cabeças de vento.
...
Acabo de ver dois. Ainda há sorte a ser-me lançada?
Destina-se a mim novo desgosto?
Ou a esta altura da vida – à meia idade – toda sorte de azares já se imputou?
Isso sim é que seria desgosto definitivo: não haver luz no fim do túnel.
Sou menos pessimista do que isso.
Um tantinho menos pelo menos.
Olho para os meus filhos e sou toda expectativa! Que maior sorte pode existir?
Adultos que ora são, é sua a vez de pensar no futuro.
Meu presente são eles, e não poderia, em hipótese alguma, suceder melhor.
Aqueles dois urubus que vejo estão a passeio; não me trazem recado. Querem tão somente voar livres, muito embora presos, por sua vez, à sorte dos ventos.
Mas, vão lá... batendo asas de quando em quando, com seu voo característico que muito bem os distingue de outros pássaros.
Lembro-me que, quando mais moça, os apontava aos meus então pequenos. Eles abismavam: “e como é que a senhora sabe que não são gaviões?”.
Ai, ai... que delícia aqueles dias! Que aulas tomávamos juntos em vista dos voos sobre nós!
Lado a lado, analisávamos as particularidades dos movimentos, dos pousos, das decolagens, da dimensão do bando, de seus cantos, chamados...
Dias outros são estes.
Enquanto absorta observo as aves, a filha administra sozinha os medicamentos sem carecer de supervisão.
O mais velho passa mensagem via celular: “ficou meio duro o arroz (o primeiro que fez em nova residência), mas não estava ruim não”.
É preciso, definitivamente, estar atenta aos sinais. Porém, não viver deles.
Viver a vida mesmo. Agarrá-la em substância concreta, apesar dos abstratos inerentes.
Simplesmente porque ela passa.
Talvez, aliás, na minha idade, as coisas soem já mais passadiças, porque a gente as sabe efêmeras.
Fim de semana passado, no carro, estiquei para trás o braço. Ela de pronto deu-me sua mão.
– Lembra, filha; lembra filho, que quando vocês eram pequeninos a mãe sempre fazia isso?
– Mãe, você faz até hoje! Responderam em duo.
Talvez eu me agarre às suas mãos... como às lembranças.
Valquíria Gesqui Malagoli, escritora e poetisa, vmalagoli@uol.com.br
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