Ninguém teve culpa. Afinal, quem assumiria uma morte, se a vítima, em vida, foi sem-dono, sem-teto, sem-nome?
Sem vanglória, resta-me de meu o pesar de espírito que puxa para baixo meu tronco, e essa espera por um fantasma.
Vou e volto ao portão, crendo que foi engano a notícia que me trouxeram. Espero que a qualquer hora ele esteja de novo ali, plantado na calçada, faminto mas cheio de energia, esperançoso e alegre, carente mas carinhoso, amarelíssimo como na primeira vez em que, ao vê-lo, eu me pus a dizer-lhe: Amarelo... Amalelo... Lelo!
Não obstante uns poucos o tenham amado muito, Lelo foi vítima do descaso e do abandono que move e pouco comove esse mundo.
Lelo sobreviveu às tentativas de envenenamento, habilmente desviou das constantes pedradas, contudo, não escapou das consequências de sua natureza arteira e ingênua.
Nunca vou me perdoar por não tê-lo acolhido. Nunca vou me perdoar por não ter lhe oferecido abrigo. Assim como às dezenas de outros que vêm e às quais alimento com ração e afeto.
Os outros continuam vindo, e não são “os outros e só”. Cada um é especial.
Acontece que o Lelo era meu em meu coração. Ele sabia disso tanto quanto eu. Só que ele agora descansa – em paz! Eu, por minha vez...
Enquanto sofro por sua partida, talvez a ele isso tenha sido o maior prêmio. Era isso ou continuar vivendo de migalhas.
Migalhas de ração e de amor. Pode, entanto, o verdadeiro amor viver de migalhas?
Terá sido amor de fato o que eu lhe dei? Terá sido tanto amor se não se impôs às questões logísticas?
Por que eu não abro logo a casa e o coração a todos os animais e pessoas desse mundo que me batem à porta?
Porque eles continuarão a chegar e a bater, e me falta já espaço, tempo, dinheiro, e porque tal decisão não compete somente a mim.
E é isso o que me resta: consolar-me à custa do olhar nu e cru para a realidade.
Quem dera tudo isso então não fosse real. Quem dera recobrasse a fé simples de quando criança, quando me iludia com a ideia de ver nas estrelas os que se foram.
Decerto o danadinho seria um cometa e novamente viria a mim!!!
Subtraio desse pensamento um riso.
Vai ver me restou alguma fé.
VALQUÍRIA GESQUI MALAGOLI, escritora e poetisa, vmalagoli@uol.com.br / www.valquiriamalagoli.com.br
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